domingo, junho 06, 2010

Tempestade


Alcanço. Não te alcanço. Não estás.
Molha-me os dedos a escuridão da noite.
Inspiro a cálida brisa do seu respirar
Que me adormece a pele e a razão.
Expiro silêncio.
Não sei quem és
Mas sinto a tua falta.
Agiganta-se a aragem
Ergue-me ao ar num remoinho jocoso
Vertigem espiral que me hipnotiza.
O ar é tenso, espreme a saudade.
Fecho os olhos...
Vai chover.


Ouve. OUVE!
O que vês quando a chuva te grita?


Esventram-se as nuvens, explode um trovão.
Fogo frígido, fátuo
Rebenta e racha em dois o firmamento.
Sepulta-me no peito a respiração
Arranca-me da garganta o sopro de um grito amputado.
Já chove.


Lua, que te apagaste,
Entorna sobre mim as lágrimas da celeste mágoa
Que não é senão minha...

Provo o sangue cristalino das estrelas
Que me encharca o rosto e o âmago.
Sobressaltam-se os lábios...
Afogo no vazio cruel, redentor
Que me entalha no coração a solidão
E me enche a alma de nada
Até transbordar.



Onde estás?
.
O vento brinca-me nos cabelos
Encosta-se ao colo e rebola
Desliza um arrepio nas veias
Percorre-me como os teus dedos
Lambe-me o desejo e sussura o teu nome...
.
Quero-te!
Vem flutuar comigo nas ondas frenéticas da paixão
Que tremem ao som do sismo que em mim lateja
Funde o teu peito no meu...
A tua luz é fogo que me consome e enlouquece!
Sente a tempestade que me incendeia
Tormenta que aguça a chama que queima e não adormece!
Derrama na língua o cheiro
Do desejo que inflama e adoça o prazer
Fome que me entorpece as vísceras e me estupra a paz!
.
Vem.
Beija-me e enraíza no meu chão.
Esbofeteia-me a loucura
Que o meu sangue fervilha do que o coração não cala...
Abraça-me.
Rasga-me a roupa e a pele

Arranha-me a carne
Solta-te em mim.
Estrangula-me os seios
Castiga-me as coxas
Morde-me a vontade
Arranca de mim esta dor de te não ter!

.

Chove.
Alcanço. E ainda não te alcanço.
Não sei quem és e sinto a tua falta.
Abro os olhos e procuro-te na escuridão...
Esmago o olhar por te não ver.
Amarro o silêncio aos lábios
Que a dor já me desce à boca em derrocada.
Chuva feroz que me descarnas as pálpebras!
Que me cravas nos olhos da memória o sorriso lascivo do Amor!
Traz-me aquele por quem chamo
Enquanto me espezinhas a agonia da saudade!

sexta-feira, março 21, 2008

A Ave do Paraíso


Silêncio. Valoel despertara e quase ensurdecia com o sibilar lancinante do sossego da madrugada. Concentrava todas as forças e atenção na própria respiração, para aliviar o estridente motim auditivo silencioso obstinado em fazê-lo sentir como se estivesse aferrolhado nas vísceras de uma britadeira gigante. De olhos meninos, pupilas escancaradas, procurava instintivamente na brecha das cortinas de riscas alguma distracção que lhe acenasse do mundo lá de fora. A manhã acendia-se lentamente por um sol indesvendável, espezinhado sob as nuvens mais grossas e argilosas que alguma vez vira. Valoel costumava sentar-se no seu pequeno tamborete de precioso mogno e marfim e enterrar os cotovelos no caixilho de contrastante madeira velha da janela, rendilhada do caruncho, onde descansava a cabeça nas mãos e deixava que o olhar e a imaginação deambulassem e se perdessem no exterior. Mas por algum motivo naquele dia sentia-se diferente. Com o queixo internado na concha de uma mão, ofegava sobre a arcaica janela e ia dedeando na condensação rabiscos informes que lhe mantinham o espírito alheado da violenta paz do seu pequeno quarto. Como um tirano louco, aniquilava-os uns atrás dos outros, destruindo com uma nova bafejadela de ar usado os que iam nascendo. Os toscos vidros distorciam ainda mais a imagem externa do jardim das traseiras, agora abandonado e radicalmente tomado de conquista por hordas de reles ervas daninhas, arbustos tortos e desgrenhados e intrépidas trepadeiras que estrangulavam a terra e engoliam tudo quanto se arriscasse a brotar dela. As árvores de fruto, há muito olvidadas, lembravam agora estendais de farrapos dependurados e esquecidos há séculos. A romãzeira tinha até rachado pelo meio e acabado por derrocar de tanta sede. Valoel fitou novamente o céu assombrado de nimbos gigantes. Aquele dia de Março teimava em alvorar cinzento. Subitamente, uma hercúlea trovoada dilacerou o firmamento de ponta a ponta, seguida instantaneamente de um estrondo aterrador e de uma borrasca torrencial digna dos trópicos. Toda aquela chuva chegara tarde demais para a malfadada romãzeira, mas não obstante e totalmente indiferente à pobre árvore, parecia querer inundar o universo e corroía ainda mais o outrora edénico quintal.


Valoel adorava passarinhos. Contemplava-os durante longos períodos de tempo, às vezes horas seguidas, manhãs e tardes inteiras. Nos intervalos das aulas ignorava brincadeiras, jogos e colegas, preferia sentar-se no relvado do recreio a presentear a passarada com bagos de arroz que larapiava da cozinha e trazia nos bolsos dos calções da farda escolar ou com as migalhas do pão-de-leite da merenda que a mãe lhe preparava todos os dias. Costumava conversar com os pardais, conhecia-os um por um. A sua mãe conhecia a sua paixão mas não aquela cumplicidade, e por isso estranhava os longos períodos de aparente isolamento que Valoel passava no jardim e os recados preocupados da sua professora. Não era comportamento normal de uma criança de sete anos. Certa vez oferecera-lhe uma pequena gaiola de madeira com um pintassilgo, mas Valoel, num gesto de inocente sapiência, escancarara a portinhola e deixara o pobre passarinho alar para a liberdade logo no dia seguinte. Embora adorasse pássaros preferia deixá-los livres, e sonhava com o dia em que um deles lhe pousasse na mão e o tocasse. Como deveriam ser fofas as suas penas! Apesar de dóceis e palradores, os pardais eram sempre ariscos e nunca se aproximavam muito. Assim como todas as restantes avezinhas. Dialogavam amiúde com ele mas não descuravam a cautela e mantinham a distância necessária a uma descolagem de urgência, preventiva da eventual consequência nefasta de uma qualquer investida de fundamento suspeito. Mas Valoel não se impunha nem os coagia. Ansiava conhecer aquele momento de contacto, de confiança e entrega totais, porque aguardava expectante o momento em que um desses bichinhos voasse para junto dele para o tocar e não para ser tocado.

Naquela manhã a chuva recém chegada mas agora incessante futurava mais uma Primavera fria. Valoel esperava sentado à janela o despertar dos pardais, cuja melodia certamente o faria sentir melhor. Mas o silêncio perpetuava-se e os pássaros não cantavam. Valoel sacudiu a inércia do corpo e desceu até ao jardim, que nesse momento se afigurou tão ermo e arruinado que lhe pareceu que até os passarinhos o tinham abandonado. Perscrutando com os olhinhos castanhos ainda ensonados os habituais poisos que tão bem lhes conhecia, Valoel estranhou a ausência dos seus amigos. Sentou-se no sobejo tronco prostrado da romãzeira e esperou, mas ao fim de algum tempo ficara com o pijama severamente ensopado da intensa chuvada. A camisolinha de alças já pouco ou nada o aquecia. E nem sinal deles. Começara a tiritar e a sua vista perdia-se cada vez mais apática na lonjura da vedação do quintal… quando lhe pareceu distinguir um brilhante raio de luz violeta. As pálpebras pularam de um vigoroso salto esgazeando-lhe os olhos, o corpo petrificou-se-lhe. Percebeu instantaneamente que era o pássaro mais maravilhoso que alguma vez havia visto. A sumptuosa e fulgurante criatura alada acabara de poisar tranquila e majestosamente num galho proeminente do pouco que restava de uma velha amendoeira. Era uma ave do paraíso.

Que visão onírica! O maravilhoso pássaro não era grande mas tinha o corpo coberto de fabulosas penas púrpura, matizadas de um brilhante tom violeta rosado que produzia uma mistura de reflexos quase indescritível. Na cauda ostentava ainda duas penas colossais, compridas e da mesma tonalidade de roxo, e a cabeça era coroada por uma penugem esverdeada macia e vaporosa. Valoel ficou enfeitiçado. Ao contemplar um ser tão sublime de contra tão triste cenário de fundo, pareceu-lhe que toda a cor do mundo tinha escorrido e vazado do planeta, e colapsado sobre aquela ave pequenina. Absorto neste pensamento, viu a ave do paraíso levantar voo novamente, e quase sentiu o coração deter-se quando esta, em absoluto silêncio, lhe pousou no ombro despido. Valoel estava paralisado de êxtase. Mas a ave não se demorou. Depois de alguns momentos, que a Valoel mais pareceram eras, logo alou para longe e desapareceu na distância. Apesar disso, o suave toque daquele pequeno anjo ecoava ainda no ombro do menino, permanecendo esculpido na sua pele e na sua alma.

Aquele encontro de uma serenidade muda e explosiva sacudira-lhe o espírito. Tinha no mesmo dia corrido a arquitectar uma morada para a sua ave do paraíso. Sim, porque ela o tinha escolhido. A ele. Era Sua. Estava certo disso. Valoel revirou a casa em busca dos mais nobres materiais para construir um pequeno palácio digno do majestoso passarinho. Desmanchou o seu inestimável tamborete de mogno encastrado de pequenas estrelinhas de marfim, e empregou as tabuinhas como paredes. Sobre elas aplicou um telhado de cúpula redonda, feito de um antigo vaso de latão que poliu arduamente até parecer de ouro. Forrou o interior com um admirável ninho que fabricou recortando em pedaços uma das gravatas caras do seu pai e uma estola da sua mãe, enovelando cuidadosamente os pequenos retalhos da mais pura seda e de pêlo de coelho com um precioso fio de lã angorá dourada do cestinho de tricô da sua avó. Arrematou a obra de arte aplicando no exterior uma vareta de fino cristal, que serviria de poiso ao seu precioso pássaro. Trabalhou com afinco durante toda a noite e na madrugada seguinte o pequeno paço estava concluído. Orgulhoso da sua obra, e adivinhando que a sua preciosa avezinha iria apreciar, correu ao jardim e colocou a casinha sobre a amendoeira. E esperou.
***

Passaram-se dois anos e Valoel nunca mais viu a ave do paraíso. Todas as manhãs descia religiosamente ao melancólico jardim, colocava o pequeno palacete nos ramos ressequidos e cansados da amendoeira, sentava-se e aguardava em silêncio, esperançoso do regresso do seu passarinho. Dia após dia, semana após semana, mês após mês. Às vezes adormecia momentaneamente e fantasiava o voo de retorno do seu adorado anjo violeta, mas logo uma bofetada de solidão o despertava, arrastando-o de novo para a realidade. Não havia noite em que Valoel não sonhasse com essa mesma ilusão. Até mesmo quando fechava brevemente os olhos, a imagem que lhe avassalava a mente era a do seu passarinho pousando no seu ombro nu. E continuava esperando… mas a ave do paraíso não voltou a aparecer.

Valoel deixara gradualmente de conversar com os outros pássaros. Ainda os banqueteava com as oferendas do costume, sempre em silêncio, mas unicamente porque as trazia para as suas esperas pensando na ave do paraíso. A intimidade com as outras aves desaparecera, sobretudo com os pardais. Tinha já notado, havia algum tempo, a presença de um pardal novo por aquelas bandas, que reconhecia por uma característica e deveras curiosa pena amarelada que se destacava por entre a penugem castanha do seu pequenino busto. Embora o invulgar passarito parecesse particularmente curioso acerca do menino, também salvaguardava nervosamente a distância de segurança, assim como todos os outros pardais que Valoel não conhecia ou já não reconhecia.

Com o passar do tempo o propósito do ritual diário de Valoel foi desvanecendo. Já se abstraía passivamente daquela esperança enfraquecida e moribunda, e conformava-se vagarosamente com o facto de não mais voltar a ver a ave do paraíso. Triste e esgotado, determinou certo dia que não esperaria nem sofreria mais. Num impulso descomedido e quase colérico embrulhou na sua cabeça todas as imagens, sensações e emoções relativas ao anjo violeta numa fria amálgama imaginária, sepultou-a mentalmente no interior do palácio que construíra e decidiu entregá-lo definitivamente aos braços da amendoeira. Assim fez, e não voltou a pensar na ave do paraíso.

Alguns dias depois, ao olhar pela janela do quarto Valoel avistou o pardal da pena amarela pousado na amendoeira, investigando curiosamente a novidade arquitectónica que parecia ali se ter instalado definitivamente. Sentindo-se invadido de uma avassaladora e inesperada sensação, Valoel cavalgou como uma avalanche até ao jardim para arredar o intruso. O pobre pardal assustou-se com aquela correria desenfreada e fugiu velozmente. Retomando o fôlego, o menino riu-se de si mesmo e sentiu dó do infeliz passarinho. Na realidade era um verdadeiro desperdício aquela morada maravilhosa estar desabitada, e era perfeitamente compreensível que qualquer pássaro a cobiçasse, mas por algum motivo do coração Valoel não queria ali ave nenhuma a residir, nem sequer a pernoitar.
Dito isto, sentou-se no tronco caído da romãzeira a patrulhar o céu, pronto a expulsar quaisquer possíveis candidatos ao paláciozinho. Durante horas não avistou nenhum pássaro nas redondezas. E não quis acreditar quando a certa altura lhe pareceu enxergar ao longe… a ave do paraíso. Estupefacto e novamente pertrificado, contemplou rendido o seu sonho, agora real, enquanto o seu anjo violeta voltava para si. Por um momento Valoel duvidou de si mesmo e da sua sanidade, mas o fabuloso pássaro estava mesmo ali. Deslizava pelo éter aéreo e dirigia-se a ele num voo sumptuoso, pairando de uma forma quase surreal. Chegando junto dele, a maravilhosa ave poisou-lhe suavemente no colo. Valoel sentia-se completamente arrebatado, e por alguns segundos ficou sem reacção. Observou incrédulo enquanto o seu anjo violeta se aninhava nos seus braços, pressionando o corpo macio contra o seu peito que insistia em latejar descontroladamente. Com o coração a transbordar de pura alegria e cego de felicidade, o menino embora inquieto e desajeitado arriscou afagar o terno passarinho. Mas, malogradamente, o êxtase do momento traiu-o. Ao erguer a nervosa mãozinha sobre a sua amada ave púrpura, acabou por feri-la ao quebrar sem intenção uma das duas longas e admiráveis penas da cauda.
A ave deteve-se num rigor súbito. Ao perceber o que tinha feito, Valoel escorou a respiração e, aflito com a mágoa que tão desastradamente lhe provocara, implorou prontamente por perdão. Sem um ruído, o pássaro fitou Valoel com olhos doces que num diminuto instante se distorceram em duas atrozes esferas de gelo, cruéis como balas de diamante numa arma de fogo. Examinou breve e silenciosamente a pena magoada, pregou o olhar no infinito e levantou voo abruptamente, desaparecendo uma vez mais no horizonte além das fronteiras do jardim abandonado.

Valoel ficou arrasado. Destruído. Aniquilado. Depois de ter esperado tanto e desesperado ao ponto de abandonar a própria esperança, o seu sonho voltara para ele e ele ingenuamente perdera-o de novo, tristemente atraiçoado pela sua desajeitada mão de criança. Não imaginava como conseguiria viver com o desventurado facto de ter causado tamanho dano ao seu anjo violeta. Um grito explodiu na sua boca, das profundezas dos pulmões, do âmago mais recôndito da alma. “Perdoa-me! PERDOA-ME!!!”. E chorou. Deixou-se acabrunhar sobre o desmedido tapete de ervas daninhas e pranteou com quantas forças tinha, com quantas lágrimas e soluços lhe existiam dentro, até se sentir desfalecer.
Alguns minutos mais tarde, Valoel encontrou o rumo de regresso à consciência graças a uma vozinha afectuosa que lhe perguntava insistentemente se estava bem. Tombou a cabeça ao lado e ali estava, a escassos centímetros do seu rosto, o pardal da pena amarela.
– Porque choras? – perguntou o pardal.
– Pensei que já não era capaz de falar com os pássaros… – soluçou Valoel.
O pardal insistiu:
– Diz-me porque choras.
Valoel respirou fundo e explicou entrecortantemente o sucedido, e emudeceu de súbito para logo de seguida voltar a soluçar desalmadamente. Magoara o seu amado anjo violeta, quebrara-lhe a nobre e soberba pena!
O pardal aguardou pacientemente que a criança se acalmasse. Quando isso aconteceu, fitou o próprio peito, onde se alojava a sua pena amarela. Num gesto delicado mas firme, arrancou-a com o bico e estendeu-a carinhosamente a Valoel, que assistia incrédulo à cena que se desenrolava perante si. O menino perdeu novamente a compostura e bramiu, desesperado:
– Porque fizeste isso?! Porque me vens castigar ainda mais?! Eu nunca quis magoar o meu passarinho, nunca o faria consciente ou propositadamente, e agora magoas-te tu também por minha causa?!
Com um pulinho gracioso e ainda com a pena amarela no bico, o pardalinho saltou para o peito de Valoel, pousou a pena sobre o seu coração e disse:
– Ofereço-te a minha pena amarela, o meu pequenino orgulho, porque sei que onde esta cresceu, certamente crescerão mais. E se não voltarem a crescer também não fará mal, porque abdiquei dela por alguém que é digno do meu amor. Quanto a ti, magoaste o teu anjo e pediste-lhe perdão. Foste digno. Se ele não te perdoou e não te ofereceu a pena quebrada, então é ele quem nesse momento não mereceu o teu amor. Mas merecerá sempre o teu perdão.
Perante estas palavras, Valoel serenou. De olhos novamente brilhantes e renascidos, aceitou com gratidão a preciosa oferta do pardal, que estava agora aninhado sobre o seu peito. Surpreendido com a confiante firmeza e calma tranquilidade que agora lhe bailavam nas mãos, Valoel acariciou ternamente a penugem do gentil passarinho. Era muito mais fofa do que imaginara.

quinta-feira, fevereiro 15, 2007

Minha Borboleta


Flori. Desenrolam-se-me as pétalas, uma a uma, como véus de veludo suave, pequenas pálpebras que aos poucos me desvendam o olhar. É Primavera. O vento respira de Sul, em bafejos quentes e afectuosos. Às vezes traz-me o cheiro do mar, que se mistura com o perfume açucarado e leve do pasto e das outras flores. Faz-me fantasiar com o frescor da água salgada, com brincadeiras animadas por entre a folia das ondas… Mas neste campo verdejante, fervilhante de cor e de vida, tantas como eu, tantas por nascer, tantas por morrer, aqui perduraremos. Conheço o meu destino, vejo-o nas outras flores. Nascer, morrer, dar vida de novo. Sempre no mesmo lugar. Juntas ondulamos ao ritmo da voz da Terra, enraizadas e imóveis no solo que nos viu brotar. Tantas, mas tão sozinhas. Eis o meu mundo.

Sonho secretamente com uma borboleta. São raras por aqui. Vejo-as voar, planando majestosamente, mas nunca senti nenhuma. Tacteio-as na minha imaginação… Como é singular a sua beleza! Porque as borboletas não se preocupam em ser belas. Vivem a sua vida, percebem ser efémeras mas cumprem a sua sorte. Há que desfrutar cada segundo, não há tempo para ser belo. E no entanto, são-no tão naturalmente.

Vivo numa solidão intermitente. As abelhas são aos milhares, vêm e vão. Pousam sorrateiramente, quase imperceptíveis, qual subtil conquistador. Não sei resistir, porque nesse momento o vazio desaparece como se nunca tivesse existido. A sua simples presença paralisa-me os sentidos. Rendo-me e devaneio, absorta da cruel frieza que tão bem lhes conheço… Porque em breve desmascaram o seu intento. Desfloram-me, profanam-me as entranhas, roubam-me o néctar e abandonam-me. Esventrada, ao vento. E eu espero que voltem, que pelo menos uma delas regresse e fique comigo…

Não me deixes!
A vida escorre-nos pelos dedos e em breve seremos pó!

Mas elas nunca retornam. Existo, definho, o tempo passa e o meu brilho já não é o mesmo. A cada sopro da brisa amena que me embala sinto-me crestar. O meu sumptuoso laranja vai dando lugar a um castanho inerte, seco… As abelhas não pousam mais em mim.

A solidão é agora constante. Preparo-me para findar. Mas… como um anjo silencioso, uma borboleta desce delicadamente e descansa sobre a aridez do meu cálice. Sinto o seu toque suave, carinhoso. Como desejei este momento! Descubro-lhe mil detalhes sublimes no corpo macio e nas asas leves e irisadas. Cada pormenor é ainda mais maravilhoso que o anterior, ainda mais majestoso, ainda mais soberbo. Pudesse eu pedir-lhe para nunca partir! Doce e preciosa borboleta, toda a vida ousei sonhar contigo, que me amasses tanto que viesses até mim e não mais me deixasses só… E que por amor partilhasses comigo a tua imortalidade de um dia!

Aprecio sequiosamente cada instante, sei que me deixará a qualquer momento. Mas não... Tranquila, ela repousa serenamente, confia. Veio para ficar. Agora, que a minha eternidade se aproxima do fim, partilhá-la-ei contigo, Minha Borboleta... Estás finalmente aqui.

quinta-feira, agosto 24, 2006

Nas Asas De Um Anjo


A praia estava vazia. Com os olhos cravados no chão, Anunna fitava os seus pés enquanto as pequeninas ondas, numa dança de vaivém despreocupado, os afundavam cada vez mais na areia fluida. Havia já algum tempo que o fazia diariamente, desde que aquela tristeza feroz a assolara. Anunna sentia-se perdida e sem saber para onde ir. Dissecara a sua vida vezes sem conta, mas não encontrava sentido para aquela mágoa disforme e implacável que tanto a feria, por isso tinha escolhido isolar-se do mundo. Sem saber porquê, costumava ficar assim imóvel até estar enterrada até meio das pernas, enquanto deixava que o vazio no seu peito a violentasse até ficar dormente. E com o baixar da maré ali ficava, sozinha e de olhar perdido na areia granulosa, até que o esgotar das forças a empurrasse para casa num ímpeto puramente mecânico e quase robótico.
Era mais um dia como os outros, chovia e Anunna dirigia-se à praia deserta para mais uma vez mitigar a sua tristeza. Ao chegar à beira mar, a chuva cessou e Anunna notou que alguém se aproximava. Era um jovem que caminhava serenamente, pisando a espuma branca que se formava quando as vagas se devolviam ao oceano. O trilho de pegadas que deixava sobre aquela alvura, que a cada dois metros era engolida por uma nova onda, fazia lembrar a cauda de um papagaio de papel, ornada de pequenos recortes coloridos. Tinha talvez a mesma idade que ela, longos cabelos negros molhados da chuva e ostentava um sorriso afectuoso. Ao chegar junto dela, o jovem deteve-se e perguntou-lhe num tom descontraído porém caloroso:
– Que estás a fazer?
Anunna respondeu numa voz sumida:
– Nada. Estou, simplesmente.
– Estar é bom.
Sem dizer mais nada, o jovem colocou-se ao lado dela, assumindo a mesma posição e olhar fixo no chão. Ali ficaram os dois, enquanto iam sendo lentamente engolidos pela areia molhada.
Passaram-se algumas horas e finalmente Anunna soltou-se da arenosa prisão com o vigor de quem destrói um castelo de areia defeituoso. O jovem inquiriu:
– Já vais?
– Já.
– Este teu exercício é uma óptima forma de meditação. Até me sinto melhor.
– Melhor? Se soubesses porque aqui estou…
– Conta-me.
Anunna hesitou. Fora apanhada desprevenida. Há tanto tempo que estava naquela situação, porém não tinha conseguido reunir explicações suficientes para exteriorizar em palavras o porquê de se sentir assim. Titubeou:
– Não… não sei. Não sei porque aqui estou. Estou aqui por nada e por tudo. Não sei o que é o nada, nem o que é o tudo… Só sei estar, mais nada.
– Não há mal nenhum em existir…
– Não quando se está só.
– Estás só?
– É uma opção. – respondeu Anunna.
– Ninguém escolhe estar só. Estar sozinho talvez… mas ninguém está só por opção.
Ouvindo estas palavras, Anunna deixou silenciosamente a praia.

No dia seguinte, quando Anunna chegou ao areal, o jovem já lá estava, copiando novamente o seu ritual. Anunna pensou em regressar a casa, mas não foi capaz. Não conseguia conceber o que faria com aquele tempo precioso em que estava apartada do mundo e que por uns momentos lhe silenciava a dor. Caminhou até ele e ali ficaram, sem palavra, olhos fixos no chão. A situação repetiu-se fielmente nos dias seguintes, sem trocarem quaisquer palavras, e Anunna deixou gradualmente de se incomodar com o jovem. Aliás, até se sentia melhor com a sua presença. Por algum motivo, o simples facto de ele ali estar e de partilhar aqueles momentos de doloroso vazio atenuava-lhe o sentimento de solidão.
Mais dias passaram, e num deles Anunna chegou à praia e o jovem não estava. Já habituada ao conforto da sua presença, Anunna suspirou e iniciou o ritual, mas desta vez de olhos fechados. E ali ficou… até que uma voz amena lhe chegou por detrás do ouvido, dizendo:
– Não abras os olhos.
Num sobressalto, Anunna tentou voltar-se, mas sentiu um par de mãos suaves que delicadamente lhe cobriram os olhos.
– Sou eu.
Anunna reconheceu a voz. Era o jovem.
– O que queres? – perguntou.
– Um pouco da tua confiança. Promete-me que não abres os olhos.
– Nem o teu nome sei!
– Lelahel.
Embora hesitante, Anunna assentiu com a cabeça. Estava intrigada com a estranha paz que sentia naquele momento. As mãos calorosas de Lelahel soltaram-lhe docemente o rosto, indo pousar suavemente na sua cintura, cingindo-a leves mas firmes. Nesse momento, Anunna sentiu-se levitar. Num espasmo de surpresa pensou em libertar-se, mas aquela serenidade não a deixou resistir. Deixou de sentir o chão. O ar escorria-lhe docemente pela face, afagando-lhe o corpo e enrolando-se-lhe nos pés descalços. Deleitada, Anunna quase adormeceu enquanto se sentia subir, subir…
– Podes abrir os olhos.
Ao abri-los, Anunna pensou estar noutro planeta. Pairava no ar um silêncio melodioso e a frescura da brisa suave esfriava-lhe aprazivelmente o rosto. Estavam no topo de um altíssimo e estreito penhasco, de rocha firme mas macia, abaixo do qual se estendia um infinito tapete de nuvens de todas as cores, espessas e fofas e de um brilho prateado. No céu inacreditavelmente azul e limpo flamejava um sol espectacularmente radioso, em todo o seu cintilante e sublime esplendor de estrela. Apreciando o manifesto deslumbramento de Anunna, Lelahel disse-lhe com um sorriso:
– Aqui sim, podes olhar para o chão.
Anunna olhou para baixo. Fixando o olhar numa nuvem amarela, pareceu-lhe ver uma imagem familiar. Era uma cena da sua infância em que, junto dos seus pais, soprava entusiasticamente as velas coloridas do bolo do seu quinto aniversário. Depois, noutra nuvem, desta vez vermelha, Anunna reviu-se no momento em que beijava o primeiro namorado pela primeira vez. Numa nuvem azul assistiu a um jantar de Natal onde o seu avô, falecido há já alguns anos, bradava piadas e histórias que só ele sabia contar, para deleite dos restantes. E em cada nuvem que fitava, Anunna via diferentes momentos da sua vida. Em algumas nuvens reviu-se em alturas difíceis, como a morte do seu adorado tio ou o atribulado fim do seu último relacionamento. Isto sucedia nas nuvens verdes. Por algum motivo, esses momentos complicados, embora dolorosos, pareciam devidamente ultrapassados e subitamente a sua recordação já não se afigurava tão assustadora.
Despertando do êxtase, Anunna olhou para Lelahel. Incrédula e ainda aturdida com a experiência das nuvens, deparou-se com o mesmo jovem que tinha conhecido na praia, mas agora envergando um enorme par de asas macias, de penas imaculadamente brancas e de um brilho níveo e sedoso. Anunna estava emudecida de espanto, mas também sentia que não havia necessidade de dizer nada. Simplesmente sorriu e voltou mais uma vez a apreciar as nuvens verdes. A sensação era algo semelhante à que vivia diariamente na praia, mas aqui todas as imagens pareciam ter um significado, e suscitavam-lhe emoções agradáveis apesar de pungentes. Na praia sentia-se bombardear por flashes dos mesmos momentos mas de uma forma descoordenada, grosseira e arrasadoramente incompreensível.
Algumas horas depois Lelahel levou Anunna novamente à praia, mantendo-a sempre de olhos fechados. Ao chegarem, Anunna abriu os olhos e Lelahel sorriu-lhe afectuosamente, afastando-se a pé e em silêncio pelo areal. E passou a ser este o ritual diário de Annuna. Cada vez que voava com ele e contemplava as nuvens coloridas, dava mais um passo na compreensão da sua vida. Anunna entendia finalmente que todos os acontecimentos da sua existência a tinham levado onde estava e a ser quem era. Aquele local era um porto de abrigo onde parecia ter o seu próprio entendimento elevado e dotado de uma limpidez espantosa. Aos poucos, a sua esperança em melhores dias tinha renascido, bem como a vontade de viver. E sempre que regressavam à praia e ela abria os olhos, Lelahel despedia-se unicamente com o mesmo sorriso terno.

Numa dessas ocasiões, chegando ao topo do rochedo Anunna abriu os olhos e constatou que Lelahel não estava. Olhou para baixo mas não conseguia avistar o chão. Tudo o que via era somente o colorido manto núbio, e vislumbrar através deste era impossível. Assustada, perscrutou a gigantesca pedra mas não achou caminho para descer. Sozinha e à beira do desespero, sentou-se no chão. Ali o dia parecia nunca acabar, e de facto aquele sol surreal não se movia. Cansada e abatida pelo crescente desespero, Anunna adormeceu.

Despertando agitadamente, Anunna apercebeu-se que estava novamente na praia. Ergueu os olhos e, não muito longe, avistou Lelahel sentado na areia, contemplando um sol rubro que mergulhava preguiçosamente nos confins do oceano. As suas asas exibiam um espectacular tom de laranja dourado, iluminadas pela sedutora e quente luz do ocaso. Anunna levantou-se de um salto e dirigiu-se bruscamente a Lelahel. De voz mordaz e num tom exasperado, interrogou:
– Como foste capaz? Porque me deixaste só lá em cima?
Lelahel respondeu calmamente:
– Não te deixei só porque não fui eu quem te levou lá.
– O quê?
– Depois de tanto tempo ainda não percebeste?
Anunna estava confusa. Tinha ficado sozinha e sem saber o que fazer no rochedo. Nem sequer sabia como tinha regressado à praia.
– Não percebi o quê? Abandonaste-me! Que mais há para perceber?
Lelahel levantou-se tranquilamente. Colocando-se atrás de Anunna, abraçou-a suavemente e, envolvendo-a com as dóceis asas, disse:
– Vês o sol? Todos os dias nasce, todos os dias morre para voltar a nascer. Também nós somos assim. Há momentos na vida em que precisamos morrer para voltar a nascer. E isso faz-nos perceber aos poucos quem somos e ensina-nos a amar ainda mais a vida. Tudo o que fiz foi mostrar-te o caminho, e tu aprendeste sozinha a lá chegar…
Lelahel afrouxou o abraço e afastou-se ligeiramente de Anunna. Ao olhar sobre o ombro, esta descobriu com espanto as suas próprias asas. Brancas e macias, como as de Lelahel. Sorrindo, trocaram um olhar terno e cúmplice. Lelahel retomou a proximidade e calor do abraço e Anunna entrelaçou docemente as suas mãos nas dele. E ali ficaram, enquanto um sol cansado dava lugar ao reinado de uma lua cheia tão alva quanto as suas asas.

quinta-feira, junho 29, 2006

Nenhum Adeus é Eterno


Dissémos adeus. Ver-te partir no teu cavalo azul esmagou-me o coração. O brilho do céu de Verão, que inveja o brilho e o azul dos teus olhos, apagou-se nesse momento. E doeu… Ainda dói, como mil punhais soterrados na carne. A tua ausência sufoca-me ao ponto de quase desfalecer, numa amargura silenciosa que pesadamente me desfaz o peito com a atroz indiferença de flocos de neve, pequenos e ardilosos tiranos que lentamente sepultam o mundo numa branquidão frígida e estéril. E nunca te toquei… Nem sei quando te verei de novo. Quanto te olho nos olhos tudo pára, nada mais existe, o próprio tempo ousa deter-se. Como te alcançar, se quando estou contigo todo um outro mundo cabe nos centímetros que nos separam? Como é cruel a impotência das minhas mãos! O que fazer, se ao mesmo tempo o universo cessa de existir nesse preciso instante? Sei que não te posso ter, e quero-te! Nunca numa vida o mesmo cometa visita a Terra duas vezes… Quantas vezes nos dá o destino uma segunda oportunidade? Quero ter-te, quero que me tenhas, quero tanto ser tua…

É já noite avançada, a viagem foi longa e dura. Acendo uma vela, deito-me na cama a contemplar a sua dança de fogo. A chama dourada, engolindo sôfrega e apaixonadamente o pavio numa combustão demorada, hipnotiza-me os sentidos. Nesta obscuridade serena, o pequeno e trémulo lume ondula em silêncio, como num êxtase carnal, tatuando no branco do tecto imagens loucas, sombras frenéticas, como se de um apêndice da minha própria mente se tratasse. A tranquilidade do quarto conflitua com o terramoto que me vai na alma, e não o domina. Não consigo parar de pensar em ti… Como esta vela, sinto-me consumir por dentro, por fora, pelas labaredas da tua luz. Uma sensação crua e primitiva apodera-se-me do espírito, avassaladora, desenfreada. Que sentimentos reais estes que me conquistam a essência e o corpo, duros e estonteantes como um instinto animal, felino! E não há razão humana que os possa explicar…

Nenhum adeus é eterno. Inabalável e corajosamente, espero por ti. Até que chegues, e até explodir em estrelas de mil cores um novo universo, só nosso, refugiar-me-ei nos núbios castelos da memória e do sonho. O sono já vence… Fecho os olhos, imaginando os teus. Conto os minutos e adormeço. Finda a noite, e até sermos um, o dia lembrar-me-á de ti… O céu renascido trar-me-á novamente o teu azul.

sexta-feira, maio 05, 2006

Transparência


Está frio. Enrosco-me um pouco mais no pequeno cobertor de viagem, já gasto de tantas e tantas vezes que me abraçou os ombros no arrefecido do relento nocturno. Do alto desta falésia avista-se o outro lado do mundo. As colossais pedras escarpadas, retalhadas por mil sóis e mil luas e mil ondas de mar, culminam neste rochedo onde me sento, qual majestoso trono. Por um momento sinto-me soberana deste reino pétreo, imponente e poderoso… e ao mesmo tempo tão inerte e frio sob a mansa negrura da noite.

Sinto-me afogar no ar gélido que me invade os pulmões. Parece-me ainda mais glacial do que a água em que há pouco mergulhei, profanando a quase vítrea calmaria oceânica. A cada inspiração sinto agora o peito inflar até ameaçar romper, sinto-me vazia. Lá em baixo, o mar continua tão sereno que quase se lhe poderia caminhar por cima. Lembra-me uma fina folha de prata ondeante, reflectindo a lua como se lhe tivessem arremessado um punhado de diamantes. As pequeninas ondas vão subindo furtivamente, mais e mais, deslizando suavemente sobre o ouro do areal e apagando, lentamente, as pegadas que deixei, uma após a outra.

Do alto desta noite esperava avistar também o outro lado de ti. Sinto-me ribombar por dentro com emoções confusas que não sei discernir e que necessito decifrar à luz dos teus olhos, como uma pauta musical precisa ser lida para se poder fazer soar e revelar ao mundo o maravilhoso prodígio que esconde, um milagre que de outra forma nunca passará de uma amálgama de traços e rabiscos loucos num pedaço de papel… Na caminhada solitária pela praia pareceu-me ouvir música, como se a cada passada pisasse as teclas de um piano e fizesse nascer uma melodia amena e doce, tão nostálgica e melancólica como a canção de uma sereia perdida. Pensei até ouvir ao longe a tua voz. Mas sei que dormes, em algum lugar, enlaçado na bruma de um sonho qualquer. Quem sabe se fantasias aventuras, se imaginas uma canção ou se sonhas com borboletas…

Tantas vezes te tentei desconstruir para te poder compreender… És tão misterioso! Estás tão perto e tão longe ao mesmo tempo... Quando te tenho nos braços sinto-te desabrochar como uma flor que só se revela ao sol… para logo depois te resguardares novamente em olhares enigmáticos, estonteantes. É como folhear um livro em branco, onde aqui e além surgem algumas linhas, às vezes com nexo, às vezes não. Sei que escreves nele incessantemente, mas não mo revelas, como um cisne que olha o céu em desafio mas nunca chega a abrir as asas. E eu quero tanto voar contigo…

Ainda tenho o corpo molhado. A brisa cortante atira-me mechas de cabelo de contra o rosto, cola-me o vestido às coxas, torna-o transparente. Sinto a tua falta… Como tudo seria fácil se tu fosses como este linho branco! Se eu ao menos pudesse molhar-te o corpo com o meu amor e ver à transparência o que sentes, como através da limpidez cristalina destas lágrimas… Suspiro profundamente. No sorriso magoado dança-me um sabor a sal.

segunda-feira, abril 10, 2006

Esperando por Sábado


Sábado de manhã. Finalmente. Que longos estes últimos seis dias! Sepultei-me em toneladas de trabalho para matar o tempo… E mesmo assim como me parece longínquo o sábado passado! Estou ansiosa por estar novamente contigo. Salto da cama num pulo vigoroso, corro em cabriolas para o chuveiro. Devoro uma torrada, calço os ténis e saio à rua para passear os cães. Cumprimento de raspão a vizinha do prédio em frente. Como de costume, é o seu enorme dálmata que a passeia a ela. Sempre que a vejo com o cão parece-me minúscula, arrastada por aquele monte de músculos sarapintado. Felizmente o bestial cachorro até é simpático, tanto com as pessoas como com outros cães, caso contrário talvez lhe pudesse trazer sérios problemas de controlo e até quem sabe uma inconveniente conta de hospital. Também eu ando quase a reboque dos meus três branquinhos, ninguém calcula a força que três insignificantes caniches podem ter quando puxam em conjunto! Mas afinal de contas até me faz bem, tenho que ter bons travões nas pernas para segurar estas feras.
Alguns minutos depois estou de volta a casa. Distribuo gratificações pelos cachorros, arrumo a cozinha, mudo de roupa. Em todos estes afazeres, já verifiquei o telemóvel trinta vezes, mas nenhuma novidade. Ligo o computador. Talvez haja algo de novo no e-mail… Nada. Está um sol maravilhoso lá fora, o dia promete ser fantástico. Mal posso esperar para te ver novamente…

Saio de casa, meto-me no carro e vou ao teu encontro. E lá estás tu, sempre com um sorriso que me derrete o coração. Quando estamos juntos as horas voam… Podiam voar dias que nunca seriam suficientes. Por isso os sábados me são tão preciosos. Tenho tanto para te dizer… Mas por algum motivo nunca consigo. Assim sendo prometi a mim mesma que o faria hoje. Paramos o carro à beira da praia, respiro fundo. Olho-te nos olhos, e é este o momento. Tal como o imaginei mil vezes, o momento em que finalmente conseguiria dizer-te o que sinto, o momento em que finalmente saberia que sentimentos são esses. Mas quando me preparo para murmurar a primeira palavra, algo muda no teu olhar, que em segundos se perde no vazio. Abres calmamente a porta do carro, caminhas em silêncio para o areal. Debatendo-me com a porta saio desastradamente do carro, mas tu afastas-te rapidamente. No céu já não brilha o sol, e começa a agigantar-se uma fria e pesada escuridão. Estás já tão longe… Tento correr ao teu encontro, mas a areia molhada parece amarrar-se-me aos pés, barrenta, demorando-me ainda mais, paralisando-me… “Espera! Espera por mim!” Grito a plenos pulmões, desafiando uma posterior mudez permanente. Mas a tua silhueta, já ténue no horizonte, não parece deter-se. Porque não páras? Não me ouves? Grito com quantas forças tenho, mas o som é cada vez mais débil. Os meus olhos debatem-se desesperadamente com a treva crescente, mas já não te distingo. Deixo-me prostrar na areia fria, esgotada e soluçando, sozinha. Só queria dizer-te que te amo…

~~~

Acordo abruptamente numa convulsão e calafrios no estômago. Respiro fundo, recuperando do pesadelo, tombo suavemente a cabeça para o lado. Com um ligeiro sorriso no rosto e mergulhado num sono pacífico, tu dormes. Aqui, a meu lado. Aninho-me nos teus braços, apertas-me suavemente. Num abraço reconfortante murmuras um afectuoso “amo-te”, doce, verdadeiro. O teu beijo torna-se caloroso, apertas-me com mais força. Quero dizer-te que também te amo, mas estou perdida nos teus lábios impacientes pelo consumar da deliciosa paixão…
~~~

Acordo. Entreabro suavemente os olhos, estou só. Sonhei que sonhava, sonhei apenas… Tu não estás aqui, não te amei, nem nunca te disse o que sinto. Da última vez que estive cara a cara contigo partilhámos bons momentos, mas também aí não fui capaz de falar. Continuo deitada na cama, protestando comigo mesma por não ter tido a coragem de te dizer que te amo. Imagino uma vez mais o momento em que o farei, olhos nos olhos… Prometo a mim própria que tudo acontecerá na próxima vez que estivermos juntos. Com um suspiro, levanto-me relutantemente… É segunda-feira.

sábado, março 25, 2006

Em todas as vidas há um dia de chuva...


4h25 da madrugada. Não consigo dormir. O tempo arrasta-se, vagaroso e amolecido… Escuto a pulsação enferma do relógio, crucificado no frio azul da parede. Nunca a noite foi tão longa. Cada batida do ponteiro dos segundos espanca o silêncio do quarto, ecoando longamente de contra as paredes e morrendo numa quietude vazia, tão extensa que me parece quase eterna, onde caberia o tempo de mil vidas. Lá fora chove… Oiço as gotas de chuva a despenhar-se na janela, cúmplices do tempo, quase uníssonas com o apático compasso do relógio. Vem-me ao pensamento um poema de Erika:

“Pérolas são as gotas da chuva fina
desfazendo-se, frias, no meu colo.
Toco-as como a uma jóia
perene, efémera
como vida já consumida.
Liquefaço-me, suave
qual riacho sem rumo
correndo para as margens
sem fronteiras.
O horizonte é lá
onde o não vejo
definido em linhas
que não alcanço.
Acrescento-me ao infinito
perdida no meu próprio olhar
sem corpo, sem mágoa
inerte
um acréscimo desconhecido da natureza.”


E estou só. Sinto-me como se tentasse correr, impotente, imersa até ao peito em água gélida, dura como estes lençóis de cetim agora frígidos da tua ausência. No ar paira ainda uma réstia do perfume do amor. Aperto a sumaúma da almofada, fecho os olhos. É quase como ter novamente o teu corpo moldando-se-me aos dedos, num enlace demorado e ardente… Ainda te sinto, tatuado nos meus sentidos, respirando perdidamente o meu ar e devolvendo-mo, os teus lábios nos meus… No peito lateja-me ainda o bater do teu coração, tão forte e turbulento, cavalgando loucamente ao ritmo dos corpos molhados de paixão...

Chove cada vez mais. O ritmo das gotas transfigurou-se e agride agora a janela com toda a violência de um exército que marcha para a guerra. A cada recordação tua a solidão dói-me ainda mais. Chove lá fora e chove-me por dentro, tão fria e torrencialmente que quase me afoga a alma. E espero… espero pelo consolo do sono, espero pela manhã, pelo amanhã… Não sei o que espero. Mas aguardo, pacientemente, a chegada do novo dia. Oiço já o chilrear dos passarinhos no despontar da aurora, entoando a doce trova da esperança que me embala num conforto inesperado. Com tanta certeza como a de o sol um dia se erguer, vitorioso, num céu azul, sei que virás de novo. E nesse momento, quando te olhar nos olhos, também o meu sol triunfará…

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N. da A.: mais Erika em www.oceano-indico.blogspot.com


terça-feira, março 14, 2006

A Formiga Solitária

Ant Face - Salvador Dali
Verão. O titânico sol africano fulminava a savana, ameaçando reduzir a pó qualquer vivente mais incauto que se atrevesse a enfrentá-lo. O fendido do solo assemelhava-se a um puzzle gigante de milhões e milhões de peças, tão vasto que nem uma hercúlea divindade olímpica o consideraria ensamblar. Aqui e além, alguns arbustos e árvores contumazes pintalgavam de um verde empoeirado a ressequida e infindável planície. Outros tantos, já exânimes, aguardavam morbidamente que a mãe natureza os consumisse, expirados na pujança abrasadora do grande rei dos céus.

A áurea paisagem era rasgada a meio por uma sinuosa depressão que na época das chuvas se transmutava num imponente e majestoso rio, nascido dos grossos e pesados aguaceiros e fecundador de toda aquela aparentemente estéril desolação. Porém, entre as pedras do crestado leito não corria agora água. Fervilhava antes uma massa negra movediça, unidireccional, serpenteante, que erguia uma ténue nuvem de pó à sua passagem. Como uma sombra feita de incontáveis pontinhos pretos, assim se movia o exército de formigas. Embutida no magote de clones, avançava Formiga.

Formiga era uma formiga como todas as outras. Apenas mais uma operária marchando. Não obstante ter sido ensinada a obedecer desde a nascença, fazia-o com especial naturalidade. Conhecia os seus deveres de cor, infatigável formiga, nunca tirava os olhos do chão. “Em nome da comunidade” era um prefixo impreterível dos poucos vocábulos que fortuitamente atirava a uma qualquer semelhante, jamais usando do poder da palavra a menos que fosse estritamente necessário. E raramente precisava de o fazer…

Num dia igual aos demais, o proletário exército progredia na rotineira demanda por alimento. Uma lagarta imprudente foi colhida pela caravana ininterrupta, mas a marcha não cessou. Esmagada sob o funesto e impiedoso avançar das passadas rítmicas das operárias, a pobre lagarta rolou, desenganada, embrulhada em poeira e patas, até aos pés de Formiga. Ao olhar para o malfadado verme, Formiga deteve-se. Uma estranha sensação e uma súbito explodir dos sentidos fê-la reagir, e num impulso instintivo até então desconhecido, arrancou a lagarta do solo e arrastou-a para as franjas do formigueiro. Ao certificar-se da segurança do amassado mas sobrevivente transeunte, retomou a passada e integrou-se novamente no cortejo.

A partir desse dia, Formiga nunca mais foi a mesma. Escaldavam-lhe na mente mil e uma ideias; tinha aprendido a pensar. Dava consigo observando o que até aí apenas vira, racionalizando, operando à margem da robotização na qual vivera trabalhando toda a sua vida. Para ela fazia sentido a comunidade, a união de esforços, a partilha do trabalho… Mas para quê? Com que propósito? Não tinha resposta. Não encontrava um objectivo, nem comunitário nem próprio. E ao olhar para as restantes formigas, autómatas e absortas de pensamento, decidiu deixar a colónia.

Ao sair do enorme e esburacado monte de areia que era o formigueiro, Formiga não sabia para onde ir. “Seguirei o sol… ele levar-me-á de encontro a tudo aquilo que ainda não conheço”, pensou. O ardor da grande estrela afagava-lhe as antenas, e funcionava como uma bússola inata. Formiga sentia que tinha, pela primeira vez na sua existência, um objectivo. Não era muito claro, mas para já servia. E andou, andou… o chão rolava-lhe por debaixo dos pés. Cada pedra, cada erva, cada grão de terra que tantas vezes tinha espezinhado, tudo aquilo agora lhe parecia novo. Caminhava com entusiasmo, descobrindo a cada passada uma nova sensação, uma textura nova, uma cor diferente. Estava inebriada pelos próprios sentidos.

Passaram-se alguns dias, e a caminhada ia já longa. Um cansaço gritante fazia-se finalmente ouvir por entre a torrente de novos estímulos quando Formiga avistou um pequeno acampamento de caçadores. Aproximou-se cautelosamente, calculando que encontraria o que comer. Migalhas de pão e alguns fios de carne seca por ali caídos revelaram-se um verdadeiro festim. A breve pausa foi revigorante, e seguiu caminho.

Horas mais tarde, Formiga encontrou um elefante que sugava sofregamente a água de uma pequena poça de água que parecia ser a réstia de uma lagoa seca. O colossal e trombudo paquiderme olhou para Formiga e perguntou:
– “Queres água?”
Formiga respondeu afirmativamente. O elefante rasgou um sorriso desdenhoso.
– “Esta água é minha. Fui eu quem a encontrou, portanto pertence-me. Posso dar-te alguma, mas o que terias tu para me dar em troca?”
– “Eu?” – disse calmamente Formiga. – “Não tenho nada para te dar…”
– “Nada?” – respondeu o elefante – “Então acho que vais ter de encontrar a tua própria água!” – e com estas palavras sorveu o líquido restante.
Formiga suspirou, e ao voltar-se para prosseguir no seu caminho, disse ao elefante:
– “Não vás para lá daqueles espinheiros. Andam por ali três caçadores, e calculo que não os queiras encontrar.”
O elefante engasgou-se. Tossiu, pigarreou, e ao recompor-se olhou para o minúsculo insecto que marchava já embalado em direcção ao sol. Fez uma careta e, de um sopro, aspergiu na sua direcção algumas gotas de água que tinha ainda na probóscide. Com um sorriso surpreso, Formiga bebeu uma gota, agradeceu e prosseguiu.

Nos dias seguintes Formiga sentiu-se desanimar. De olhos pregados na terra do caminho, parecia-lhe estar mergulhada numa interminável sombra. Já há algum tempo que não sentia o calor do sol na sensível pelugem das antenas, por isso não sabia para onde ir. O que perseguia agora era uma marca de luminosidade solar no chão que avistava à distância, mas que parecia nunca conseguir alcançar. Esgotada, por momentos arrependeu-se de ter ousado pensar. De que lhe serviria isso agora, se o único meio que tinha para alcançar o seu objectivo era a sua bússola solar? Naquele instante, desejou estar de volta à colónia. Sentia-se só e fazia-lhe falta a segurança do conformismo. A derrota da sua audácia em querer ser mais do que uma simples formiga parecia evidente. Mas o mal estava feito, e embora sem esperanças, Formiga prosseguiu em busca do brilhante e longínquo pedaço de chão inundado de sol.

Ao longe, o horizonte transfigurava-se. Em poucos instantes, todo o chão escureceu, e ao ouvir um ribombar marulhado, Formiga apercebeu-se que estava no leito seco de outro rio… e que em breve seria engolida por uma violenta enxurrada. Olhou uma última vez o chão e cerrou os olhos, rígida de pavor. A razão tinha daquelas coisas… e aquele era um dos momentos em que desejava não ter a capacidade de pensar. Talvez assim não pudesse antever, e portanto temer, o que estava para lhe acontecer nos próximos segundos.

Ainda tremendo de choque, Formiga entreabriu os olhos. Estava deitada de costas, e pela primeira vez encarou a visão directa do sol. Nunca tinha olhado para cima… Ainda confusa, apercebeu-se finalmente que tinha escapado à terrível massa cavalgante de água. Mas como? Levantou-se e verificou que estava num lugar alto e sinuoso, cuja aspereza lhe lembrava algo…
O elefante! Num rasgo de lucidez, Formiga compreendeu que tinha sido salva da enxurrada pelo elefante, que a seguia de perto desde o episódio da partilha da água. E claro… a sombra que a perseguira desde então… Sentiu-se feliz por perceber o que se passara e agradeceu profundamente o gesto de retribuição. Mas o elefante não tinha somente salvo a sua vida… Formiga aprendera finalmente a tirar os olhos do chão. Se o tivesse feito antes, teria certamente avistado o gigantesco animal que ia no seu encalço…


EPÍLOGO
Tal como a Formiga, aprendamos também nós a procurar racionalmente as causas do que nos ensombra. A reflexão tem a virtude de apaziguar o desespero que normalmente se instala quando tudo nos parece escuridão. E, não descurando o poder da voz do coração, é a razão quem nos permite entender e aceitar o que há a entender e a aceitar. Tiremos os olhos do chão, e encaremos o sol de frente!
Mas com tristeza constato que me sinto tentada a deixar por aqui as conclusões a tirar desta pequena história. Infelizmente a raça humana tem o grande defeito da tendenciosidade para olhar o próprio umbigo… Adoramos projectar-nos em valorosos heróis de histórias (com moral ou não) ou em personagens sofredores que no final são de alguma forma recompensados pelos seus tormentos. Mas desta vez revejamo-nos no elefante. Quantas vezes não ofuscamos e oprimimos indeliberadamente os que mais admiramos ou amamos, colocando-nos egoisticamente entre eles e o seu sol? Ou pior, se caminhamos com eles sem nos fazer notar, sem reconhecermos e afirmarmos o seu valor (ou até a sua simples existência!), sem ao menos uma palavra de apreço dizendo unicamente “Estou aqui.”? Sejamos honestos, são mais as vezes que o fazemos do que as que gostamos de admitir. E são as vezes em que o fazemos sem percepção as mais demolidoras, o que me leva a insistir novamente na questão da reflexão. Tenhamos mais presença naquilo que fazemos. Os que nos são queridos merecem de nós todo o amor e empenho, merecem que os ajudemos a olhar o céu… com todo o esforço que isso possa representar!

domingo, março 05, 2006

Morangos de Outono

Quando acordei naquela manhã, um céu cinzentamente carrancudo e um cheiro intenso a chuva penetravam-me o quarto por uma fresta da janela. Percebi imediatamente que ia ser definitivamente um dia “não”. Sentia-me mais fatigada do que quando me tinha deitado e não me apetecia fazer nada, nem tão pouco dormir… Mas acabei por me conformar, embora relutantemente, com o que ia ser mais um dia difícil de passar, e arrastei-me para fora da cama. Duas horas e um longo duche depois sentei-me no chão da sala a organizar um monte de papelada que se tinha acumulado a um ritmo alucinante. Nunca tinha recebido tanta correspondência em tão pouco tempo, e no entanto nada de útil nem tão pouco de interessante. Parangonas como “Tudo a 50%! Faça já a sua encomenda!” ou “Participe na excursão a Fátima e ganhe um trem de cozinha”, folhetos do Continente e da Telepizza e até um pequeno cartão de uma qualquer empresa de serralharia com o calendário dos jogos de apuramento da Selecção Portuguesa para o Mundial 2006 no verso faziam o colorido das letras parecer ridiculamente aviltado. E, embrulhado no retorcido arco-íris de caracteres, o ríspido preto e branco das contas da água e do Visa. Com a vista a latejar, descansei os olhos na direcção da porta envidraçada da varanda. Um gigantesco muro repleto de mil outras janelas emparedava-me o horizonte, e fez-me sentir ainda mais moída. Embora não me sentisse com energia, uma espécie de claustrofobia apoderou-se de mim e empurrou-me para fora de casa.

Rodei a chave na ignição do carro sem saber muito bem para onde ir. Precisava de respirar, limpar da mente o peso dos milhares de toneladas de betão que me entravam pelos vidros de casa todos os dias. Curiosamente, sentia-me bem melhor dentro daquele pequeno casulo metálico. “Pelo menos destas janelas posso avistar o que eu quiser…”. Mas que ideia brilhante! Num rasgo frenético de motivação resolvi comprar uma planta para pôr na varanda. Pelo menos distrair-me-ia a vista da triste paisagem…

Cheguei a casa com uma pequena roseira enfiada numa floreira, entusiasmada com a promessa dos seus três pequeninos botões. Sempre tive uma adoração por rosas amarelas, apesar de a minha avó me advertir constantemente de que flores amarelas são só para funerais. Coloquei o vaso na varanda de modo a poder avistá-lo de todos os pontos da sala. E senti-me melhor, orgulhosa de mim mesma com tão simples remédio para a má disposição.

Esperei tempos e tempos e nada de rosas. Dia após dia a robusta roseira definhava mais um pouco, até que findo um mês acabou por secar completamente. Tristemente concluí que o peso daquele cimento todo não me comprimia só a mim… Mas estava tão irritada que voltei à florista com vontade de a insultar e acusar de burla. Felizmente caí em mim antes de o fazer, embora já me encontrasse dentro da loja. E foi então que avistei a frágil e atrofiada plantinha metida num pequeno vaso de plástico preto. Lembrava-me vagamente de a ter visto quando comprei a roseira, e até de ter rido interiormente ao ler o minúsculo cartão que espreitava do meio das folhinhas recortadas e que dizia “Morangueiro variante Sweet Charlie”. A camada poeirenta na superfície do vasinho fazia crer que aquela pobre verdura estava para ali esquecida há bastante tempo, mas o seu aspecto parecia-me tão igual à primeira vez que a havia visto que me fez questionar-me se aquela coisinha não seria mais robusta do que parecia. E resolvi comprá-la. Afinal, os morangueiros são da família das roseiras… Portanto era quase o mesmo que ter rosas na varanda.


Ao pousar o meu Sweet Charlie no mesmo local da varanda onde a roseira esteve abandonei a esperança de alguma vez obter morangos, ou sequer flores. Preocupava-me acima de tudo se ele sobreviveria ao Inverno que se avizinhava. Lembrei-me de converter em estufa um grande e velho aquário cujo único inquilino se havia revoltado e saltado para a secura da morte há três anos. E eu compreendia o seu suicídio. Ao ver novamente as cinco lâminas de vidro que o encarceravam não pude conter um sorriso irónico… Exactamente como o meu peixinho Bubbles, também eu me sentia estrangulada com o que via para lá dos meus vidros.

Com o passar dos dias reparei que o Sweet Charlie se estava a dar bem com a estufa improvisada. Nos primeiros tempos ia ver como estava quase de hora a hora, talvez traumatizada com o que aconteceu à pobre roseira amarela. Depois deixei-me de tantos cuidados. Via-o através das portas da varanda todos os dias, mas só ia visitá-lo de vez em quando, para lhe dar de beber. Passaram-se alguns meses e ele não crescia, mas pelo menos estava bem verde. E de uma forma simpaticamente passiva estava também sempre pronto a desviar-me o olhar dos prédios em frente.

Faltavam três semanas para a Primavera quando reparei que do Sweet Charlie havia brotado um novo rebentinho. Numa centelha de esperança ocorreu-me que talvez fosse uma flor… E que alegria isso me traria! Mas com o tempo o brotinho revelou-se apenas mais uma folhinha, tão verde e recortada como as outras. Fiquei desapontada, mas ainda sentia a mesma gratidão pelo papel que o Sweet Charlie tinha na minha vida. Sabia, porém, que era o encerrar definitivo dessa esperança. E desse dia em diante deixei de o perscrutar, limitando-me a aguá-lo.

Nesse ano a minha vida encontrava-se num furioso rebuliço. Estava entre empregos, falecera-me um familiar próximo, tinha terminado uma longa relação e sentia-me desorientada. Parecia-me que o universo se tinha amotinado contra mim. Sentia-me anti-social e talvez por isso não me apetecia falar com ninguém. Queria desaparecer. No entanto, esbanjava o meu tempo livre enfiada em centros comerciais. Dava-me gozo andar incógnita e transparente no meio da amálgama de gente, olhar para a anárquica horda e sentir-me sossegada por nenhuma daquelas pessoas ter qualquer tipo de assunto comigo. Nos últimos tempos estava, pelas piores razões, aguçadamente ciente do pior que existe na raça humana, e provavelmente por esse motivo tinha tanto prazer em estar simultaneamente tão próxima e tão distante da chusma de “window shoppers”.

Num desses devaneios aconteceu sentir uma mão no meu ombro. Voltei-me e deparei com um colega que não via há alguns anos. Cumprimentou-me afavelmente e aquela inesperada familiaridade fez-me sentir estranha. Porém, a genuinidade com que o fez amainou-me as defesas. Tínhamos convivido bastante nos tempos de faculdade, mas, por algum motivo daqueles que nos incomodam imenso mas que não sabemos explicar nem tão pouco evitar, havíamos perdido o contacto. Talvez nunca tivéssemos chegado a ser amigos, mas a naturalidade com que nos dávamos nessa altura tê-lo-ia certamente assegurado não fosse termos seguido caminhos disjuntos. Convidou-me para um café e por um instante fiquei inquieta, pois há muito que não tinha vontade de partilhar tempo com ninguém. Não obstante, a perspectiva de o fazer com ele mostrava-se bastante apelativa, e fez-me sentir bem. Trocámos contactos e uns dias depois fomos a um barzinho simpático. As luzes preguiçosas e de um dourado macio tornavam a moleza dos assentos singularmente confortável. Fiquei surpreendida com o paralelismo dos nossos percursos de vida e emoções, e como tal saboreei o diálogo com particular regalo. Foi como ouvir descrever o meu imo pelas palavras de outro, mas pelos mesmos olhos. Sentia-me como se estivesse num momento de introspecção, como quem confidencia secretamente com o espelho. Sabia que era mútuo. E naquela confabulação aprazível, as horas passaram fluidas e discretas.

Eram já 06h40 quando nos despedimos, mas fizemo-lo em cúmplice relutância. No caminho para casa, o pavimento molhado da solitária 2ª Circular reflectia os faróis do carro. Mais à frente e poucos metros acima, um avião cruzou o céu quase limpo em direcção ao aeroporto, esculpindo a negro os seus contornos no matizado da alvorada. Nesse breve instante, revi-me no enorme aparelho alado. Depois de uma longa e extenuante viagem cheia de turbulência, sentia-me preparada para aterrar.

Cheguei a casa e o enlevo daquela noite tirara-me o sono. Aninhei-me por entre as almofadas do sofá com uma caneca de chá a aquecer-me as mãos, ainda a tempo de apreciar os primeiros e tímidos raios do sol que nascia por detrás do enorme prédio de doze andares que me enclaustra a janela. Por entre os imponentes edifícios, uma pequena faixa visível de céu alardeava algumas nuvens cinzentas, denunciadoras da chegada do Outono. Olhei para o Sweet Charlie, sozinho na varanda, barricado na sua fortaleza vítrea. Há já muito que não me sentava a observá-lo. E de um golpe de vista reparei em algo subtilmente camuflado sob as suas folhas recortadas…

Um morango! Embora pequenino, tinha um rubor apetecível. Sentia-me dormente de estupefacção. Não conseguia compreender. Como teria o Sweet Charlie conseguido ocultar a criação de tamanho tesouro?! Como era possível não ter visto a flor?! E o mais inacreditável, morangos em pleno Outono?! Ao contemplar aquela plantinha fenomenal o entorpecimento rapidamente se metamorfoseou num rasgado sorriso. Dei um último gole de chá e instalei-me de novo no sofá. Na mesma faixa de céu, as nuvens pareciam multiplicar-se, ameaçando perigosamente o sol já alto. Com um suspiro conformei-me com o que ia ser mais um dia de chuva. Mas desta vez com um outro alento. Afinal, o Sweet Charlie acabara de testemunhar que as melhores coisas da vida ocorrem nos momentos mais imprevisíveis. Ainda com estes pensamentos a ecoar no espírito, ecoou na sala o toque do telemóvel…