sexta-feira, maio 05, 2006

Transparência


Está frio. Enrosco-me um pouco mais no pequeno cobertor de viagem, já gasto de tantas e tantas vezes que me abraçou os ombros no arrefecido do relento nocturno. Do alto desta falésia avista-se o outro lado do mundo. As colossais pedras escarpadas, retalhadas por mil sóis e mil luas e mil ondas de mar, culminam neste rochedo onde me sento, qual majestoso trono. Por um momento sinto-me soberana deste reino pétreo, imponente e poderoso… e ao mesmo tempo tão inerte e frio sob a mansa negrura da noite.

Sinto-me afogar no ar gélido que me invade os pulmões. Parece-me ainda mais glacial do que a água em que há pouco mergulhei, profanando a quase vítrea calmaria oceânica. A cada inspiração sinto agora o peito inflar até ameaçar romper, sinto-me vazia. Lá em baixo, o mar continua tão sereno que quase se lhe poderia caminhar por cima. Lembra-me uma fina folha de prata ondeante, reflectindo a lua como se lhe tivessem arremessado um punhado de diamantes. As pequeninas ondas vão subindo furtivamente, mais e mais, deslizando suavemente sobre o ouro do areal e apagando, lentamente, as pegadas que deixei, uma após a outra.

Do alto desta noite esperava avistar também o outro lado de ti. Sinto-me ribombar por dentro com emoções confusas que não sei discernir e que necessito decifrar à luz dos teus olhos, como uma pauta musical precisa ser lida para se poder fazer soar e revelar ao mundo o maravilhoso prodígio que esconde, um milagre que de outra forma nunca passará de uma amálgama de traços e rabiscos loucos num pedaço de papel… Na caminhada solitária pela praia pareceu-me ouvir música, como se a cada passada pisasse as teclas de um piano e fizesse nascer uma melodia amena e doce, tão nostálgica e melancólica como a canção de uma sereia perdida. Pensei até ouvir ao longe a tua voz. Mas sei que dormes, em algum lugar, enlaçado na bruma de um sonho qualquer. Quem sabe se fantasias aventuras, se imaginas uma canção ou se sonhas com borboletas…

Tantas vezes te tentei desconstruir para te poder compreender… És tão misterioso! Estás tão perto e tão longe ao mesmo tempo... Quando te tenho nos braços sinto-te desabrochar como uma flor que só se revela ao sol… para logo depois te resguardares novamente em olhares enigmáticos, estonteantes. É como folhear um livro em branco, onde aqui e além surgem algumas linhas, às vezes com nexo, às vezes não. Sei que escreves nele incessantemente, mas não mo revelas, como um cisne que olha o céu em desafio mas nunca chega a abrir as asas. E eu quero tanto voar contigo…

Ainda tenho o corpo molhado. A brisa cortante atira-me mechas de cabelo de contra o rosto, cola-me o vestido às coxas, torna-o transparente. Sinto a tua falta… Como tudo seria fácil se tu fosses como este linho branco! Se eu ao menos pudesse molhar-te o corpo com o meu amor e ver à transparência o que sentes, como através da limpidez cristalina destas lágrimas… Suspiro profundamente. No sorriso magoado dança-me um sabor a sal.