A Formiga Solitária
Verão. O titânico sol africano fulminava a savana, ameaçando reduzir a pó qualquer vivente mais incauto que se atrevesse a enfrentá-lo. O fendido do solo assemelhava-se a um puzzle gigante de milhões e milhões de peças, tão vasto que nem uma hercúlea divindade olímpica o consideraria ensamblar. Aqui e além, alguns arbustos e árvores contumazes pintalgavam de um verde empoeirado a ressequida e infindável planície. Outros tantos, já exânimes, aguardavam morbidamente que a mãe natureza os consumisse, expirados na pujança abrasadora do grande rei dos céus.
A áurea paisagem era rasgada a meio por uma sinuosa depressão que na época das chuvas se transmutava num imponente e majestoso rio, nascido dos grossos e pesados aguaceiros e fecundador de toda aquela aparentemente estéril desolação. Porém, entre as pedras do crestado leito não corria agora água. Fervilhava antes uma massa negra movediça, unidireccional, serpenteante, que erguia uma ténue nuvem de pó à sua passagem. Como uma sombra feita de incontáveis pontinhos pretos, assim se movia o exército de formigas. Embutida no magote de clones, avançava Formiga.
Formiga era uma formiga como todas as outras. Apenas mais uma operária marchando. Não obstante ter sido ensinada a obedecer desde a nascença, fazia-o com especial naturalidade. Conhecia os seus deveres de cor, infatigável formiga, nunca tirava os olhos do chão. “Em nome da comunidade” era um prefixo impreterível dos poucos vocábulos que fortuitamente atirava a uma qualquer semelhante, jamais usando do poder da palavra a menos que fosse estritamente necessário. E raramente precisava de o fazer…
Num dia igual aos demais, o proletário exército progredia na rotineira demanda por alimento. Uma lagarta imprudente foi colhida pela caravana ininterrupta, mas a marcha não cessou. Esmagada sob o funesto e impiedoso avançar das passadas rítmicas das operárias, a pobre lagarta rolou, desenganada, embrulhada em poeira e patas, até aos pés de Formiga. Ao olhar para o malfadado verme, Formiga deteve-se. Uma estranha sensação e uma súbito explodir dos sentidos fê-la reagir, e num impulso instintivo até então desconhecido, arrancou a lagarta do solo e arrastou-a para as franjas do formigueiro. Ao certificar-se da segurança do amassado mas sobrevivente transeunte, retomou a passada e integrou-se novamente no cortejo.
A partir desse dia, Formiga nunca mais foi a mesma. Escaldavam-lhe na mente mil e uma ideias; tinha aprendido a pensar. Dava consigo observando o que até aí apenas vira, racionalizando, operando à margem da robotização na qual vivera trabalhando toda a sua vida. Para ela fazia sentido a comunidade, a união de esforços, a partilha do trabalho… Mas para quê? Com que propósito? Não tinha resposta. Não encontrava um objectivo, nem comunitário nem próprio. E ao olhar para as restantes formigas, autómatas e absortas de pensamento, decidiu deixar a colónia.
Ao sair do enorme e esburacado monte de areia que era o formigueiro, Formiga não sabia para onde ir. “Seguirei o sol… ele levar-me-á de encontro a tudo aquilo que ainda não conheço”, pensou. O ardor da grande estrela afagava-lhe as antenas, e funcionava como uma bússola inata. Formiga sentia que tinha, pela primeira vez na sua existência, um objectivo. Não era muito claro, mas para já servia. E andou, andou… o chão rolava-lhe por debaixo dos pés. Cada pedra, cada erva, cada grão de terra que tantas vezes tinha espezinhado, tudo aquilo agora lhe parecia novo. Caminhava com entusiasmo, descobrindo a cada passada uma nova sensação, uma textura nova, uma cor diferente. Estava inebriada pelos próprios sentidos.
Passaram-se alguns dias, e a caminhada ia já longa. Um cansaço gritante fazia-se finalmente ouvir por entre a torrente de novos estímulos quando Formiga avistou um pequeno acampamento de caçadores. Aproximou-se cautelosamente, calculando que encontraria o que comer. Migalhas de pão e alguns fios de carne seca por ali caídos revelaram-se um verdadeiro festim. A breve pausa foi revigorante, e seguiu caminho.
Horas mais tarde, Formiga encontrou um elefante que sugava sofregamente a água de uma pequena poça de água que parecia ser a réstia de uma lagoa seca. O colossal e trombudo paquiderme olhou para Formiga e perguntou:
– “Queres água?”
Formiga respondeu afirmativamente. O elefante rasgou um sorriso desdenhoso.
– “Esta água é minha. Fui eu quem a encontrou, portanto pertence-me. Posso dar-te alguma, mas o que terias tu para me dar em troca?”
– “Eu?” – disse calmamente Formiga. – “Não tenho nada para te dar…”
– “Nada?” – respondeu o elefante – “Então acho que vais ter de encontrar a tua própria água!” – e com estas palavras sorveu o líquido restante.
Formiga suspirou, e ao voltar-se para prosseguir no seu caminho, disse ao elefante:
– “Não vás para lá daqueles espinheiros. Andam por ali três caçadores, e calculo que não os queiras encontrar.”
O elefante engasgou-se. Tossiu, pigarreou, e ao recompor-se olhou para o minúsculo insecto que marchava já embalado em direcção ao sol. Fez uma careta e, de um sopro, aspergiu na sua direcção algumas gotas de água que tinha ainda na probóscide. Com um sorriso surpreso, Formiga bebeu uma gota, agradeceu e prosseguiu.
Nos dias seguintes Formiga sentiu-se desanimar. De olhos pregados na terra do caminho, parecia-lhe estar mergulhada numa interminável sombra. Já há algum tempo que não sentia o calor do sol na sensível pelugem das antenas, por isso não sabia para onde ir. O que perseguia agora era uma marca de luminosidade solar no chão que avistava à distância, mas que parecia nunca conseguir alcançar. Esgotada, por momentos arrependeu-se de ter ousado pensar. De que lhe serviria isso agora, se o único meio que tinha para alcançar o seu objectivo era a sua bússola solar? Naquele instante, desejou estar de volta à colónia. Sentia-se só e fazia-lhe falta a segurança do conformismo. A derrota da sua audácia em querer ser mais do que uma simples formiga parecia evidente. Mas o mal estava feito, e embora sem esperanças, Formiga prosseguiu em busca do brilhante e longínquo pedaço de chão inundado de sol.
Ao longe, o horizonte transfigurava-se. Em poucos instantes, todo o chão escureceu, e ao ouvir um ribombar marulhado, Formiga apercebeu-se que estava no leito seco de outro rio… e que em breve seria engolida por uma violenta enxurrada. Olhou uma última vez o chão e cerrou os olhos, rígida de pavor. A razão tinha daquelas coisas… e aquele era um dos momentos em que desejava não ter a capacidade de pensar. Talvez assim não pudesse antever, e portanto temer, o que estava para lhe acontecer nos próximos segundos.
Ainda tremendo de choque, Formiga entreabriu os olhos. Estava deitada de costas, e pela primeira vez encarou a visão directa do sol. Nunca tinha olhado para cima… Ainda confusa, apercebeu-se finalmente que tinha escapado à terrível massa cavalgante de água. Mas como? Levantou-se e verificou que estava num lugar alto e sinuoso, cuja aspereza lhe lembrava algo…
A áurea paisagem era rasgada a meio por uma sinuosa depressão que na época das chuvas se transmutava num imponente e majestoso rio, nascido dos grossos e pesados aguaceiros e fecundador de toda aquela aparentemente estéril desolação. Porém, entre as pedras do crestado leito não corria agora água. Fervilhava antes uma massa negra movediça, unidireccional, serpenteante, que erguia uma ténue nuvem de pó à sua passagem. Como uma sombra feita de incontáveis pontinhos pretos, assim se movia o exército de formigas. Embutida no magote de clones, avançava Formiga.
Formiga era uma formiga como todas as outras. Apenas mais uma operária marchando. Não obstante ter sido ensinada a obedecer desde a nascença, fazia-o com especial naturalidade. Conhecia os seus deveres de cor, infatigável formiga, nunca tirava os olhos do chão. “Em nome da comunidade” era um prefixo impreterível dos poucos vocábulos que fortuitamente atirava a uma qualquer semelhante, jamais usando do poder da palavra a menos que fosse estritamente necessário. E raramente precisava de o fazer…
Num dia igual aos demais, o proletário exército progredia na rotineira demanda por alimento. Uma lagarta imprudente foi colhida pela caravana ininterrupta, mas a marcha não cessou. Esmagada sob o funesto e impiedoso avançar das passadas rítmicas das operárias, a pobre lagarta rolou, desenganada, embrulhada em poeira e patas, até aos pés de Formiga. Ao olhar para o malfadado verme, Formiga deteve-se. Uma estranha sensação e uma súbito explodir dos sentidos fê-la reagir, e num impulso instintivo até então desconhecido, arrancou a lagarta do solo e arrastou-a para as franjas do formigueiro. Ao certificar-se da segurança do amassado mas sobrevivente transeunte, retomou a passada e integrou-se novamente no cortejo.
A partir desse dia, Formiga nunca mais foi a mesma. Escaldavam-lhe na mente mil e uma ideias; tinha aprendido a pensar. Dava consigo observando o que até aí apenas vira, racionalizando, operando à margem da robotização na qual vivera trabalhando toda a sua vida. Para ela fazia sentido a comunidade, a união de esforços, a partilha do trabalho… Mas para quê? Com que propósito? Não tinha resposta. Não encontrava um objectivo, nem comunitário nem próprio. E ao olhar para as restantes formigas, autómatas e absortas de pensamento, decidiu deixar a colónia.
Ao sair do enorme e esburacado monte de areia que era o formigueiro, Formiga não sabia para onde ir. “Seguirei o sol… ele levar-me-á de encontro a tudo aquilo que ainda não conheço”, pensou. O ardor da grande estrela afagava-lhe as antenas, e funcionava como uma bússola inata. Formiga sentia que tinha, pela primeira vez na sua existência, um objectivo. Não era muito claro, mas para já servia. E andou, andou… o chão rolava-lhe por debaixo dos pés. Cada pedra, cada erva, cada grão de terra que tantas vezes tinha espezinhado, tudo aquilo agora lhe parecia novo. Caminhava com entusiasmo, descobrindo a cada passada uma nova sensação, uma textura nova, uma cor diferente. Estava inebriada pelos próprios sentidos.
Passaram-se alguns dias, e a caminhada ia já longa. Um cansaço gritante fazia-se finalmente ouvir por entre a torrente de novos estímulos quando Formiga avistou um pequeno acampamento de caçadores. Aproximou-se cautelosamente, calculando que encontraria o que comer. Migalhas de pão e alguns fios de carne seca por ali caídos revelaram-se um verdadeiro festim. A breve pausa foi revigorante, e seguiu caminho.
Horas mais tarde, Formiga encontrou um elefante que sugava sofregamente a água de uma pequena poça de água que parecia ser a réstia de uma lagoa seca. O colossal e trombudo paquiderme olhou para Formiga e perguntou:
– “Queres água?”
Formiga respondeu afirmativamente. O elefante rasgou um sorriso desdenhoso.
– “Esta água é minha. Fui eu quem a encontrou, portanto pertence-me. Posso dar-te alguma, mas o que terias tu para me dar em troca?”
– “Eu?” – disse calmamente Formiga. – “Não tenho nada para te dar…”
– “Nada?” – respondeu o elefante – “Então acho que vais ter de encontrar a tua própria água!” – e com estas palavras sorveu o líquido restante.
Formiga suspirou, e ao voltar-se para prosseguir no seu caminho, disse ao elefante:
– “Não vás para lá daqueles espinheiros. Andam por ali três caçadores, e calculo que não os queiras encontrar.”
O elefante engasgou-se. Tossiu, pigarreou, e ao recompor-se olhou para o minúsculo insecto que marchava já embalado em direcção ao sol. Fez uma careta e, de um sopro, aspergiu na sua direcção algumas gotas de água que tinha ainda na probóscide. Com um sorriso surpreso, Formiga bebeu uma gota, agradeceu e prosseguiu.
Nos dias seguintes Formiga sentiu-se desanimar. De olhos pregados na terra do caminho, parecia-lhe estar mergulhada numa interminável sombra. Já há algum tempo que não sentia o calor do sol na sensível pelugem das antenas, por isso não sabia para onde ir. O que perseguia agora era uma marca de luminosidade solar no chão que avistava à distância, mas que parecia nunca conseguir alcançar. Esgotada, por momentos arrependeu-se de ter ousado pensar. De que lhe serviria isso agora, se o único meio que tinha para alcançar o seu objectivo era a sua bússola solar? Naquele instante, desejou estar de volta à colónia. Sentia-se só e fazia-lhe falta a segurança do conformismo. A derrota da sua audácia em querer ser mais do que uma simples formiga parecia evidente. Mas o mal estava feito, e embora sem esperanças, Formiga prosseguiu em busca do brilhante e longínquo pedaço de chão inundado de sol.
Ao longe, o horizonte transfigurava-se. Em poucos instantes, todo o chão escureceu, e ao ouvir um ribombar marulhado, Formiga apercebeu-se que estava no leito seco de outro rio… e que em breve seria engolida por uma violenta enxurrada. Olhou uma última vez o chão e cerrou os olhos, rígida de pavor. A razão tinha daquelas coisas… e aquele era um dos momentos em que desejava não ter a capacidade de pensar. Talvez assim não pudesse antever, e portanto temer, o que estava para lhe acontecer nos próximos segundos.
Ainda tremendo de choque, Formiga entreabriu os olhos. Estava deitada de costas, e pela primeira vez encarou a visão directa do sol. Nunca tinha olhado para cima… Ainda confusa, apercebeu-se finalmente que tinha escapado à terrível massa cavalgante de água. Mas como? Levantou-se e verificou que estava num lugar alto e sinuoso, cuja aspereza lhe lembrava algo…
O elefante! Num rasgo de lucidez, Formiga compreendeu que tinha sido salva da enxurrada pelo elefante, que a seguia de perto desde o episódio da partilha da água. E claro… a sombra que a perseguira desde então… Sentiu-se feliz por perceber o que se passara e agradeceu profundamente o gesto de retribuição. Mas o elefante não tinha somente salvo a sua vida… Formiga aprendera finalmente a tirar os olhos do chão. Se o tivesse feito antes, teria certamente avistado o gigantesco animal que ia no seu encalço…
EPÍLOGO
Tal como a Formiga, aprendamos também nós a procurar racionalmente as causas do que nos ensombra. A reflexão tem a virtude de apaziguar o desespero que normalmente se instala quando tudo nos parece escuridão. E, não descurando o poder da voz do coração, é a razão quem nos permite entender e aceitar o que há a entender e a aceitar. Tiremos os olhos do chão, e encaremos o sol de frente!
EPÍLOGO
Tal como a Formiga, aprendamos também nós a procurar racionalmente as causas do que nos ensombra. A reflexão tem a virtude de apaziguar o desespero que normalmente se instala quando tudo nos parece escuridão. E, não descurando o poder da voz do coração, é a razão quem nos permite entender e aceitar o que há a entender e a aceitar. Tiremos os olhos do chão, e encaremos o sol de frente!
Mas com tristeza constato que me sinto tentada a deixar por aqui as conclusões a tirar desta pequena história. Infelizmente a raça humana tem o grande defeito da tendenciosidade para olhar o próprio umbigo… Adoramos projectar-nos em valorosos heróis de histórias (com moral ou não) ou em personagens sofredores que no final são de alguma forma recompensados pelos seus tormentos. Mas desta vez revejamo-nos no elefante. Quantas vezes não ofuscamos e oprimimos indeliberadamente os que mais admiramos ou amamos, colocando-nos egoisticamente entre eles e o seu sol? Ou pior, se caminhamos com eles sem nos fazer notar, sem reconhecermos e afirmarmos o seu valor (ou até a sua simples existência!), sem ao menos uma palavra de apreço dizendo unicamente “Estou aqui.”? Sejamos honestos, são mais as vezes que o fazemos do que as que gostamos de admitir. E são as vezes em que o fazemos sem percepção as mais demolidoras, o que me leva a insistir novamente na questão da reflexão. Tenhamos mais presença naquilo que fazemos. Os que nos são queridos merecem de nós todo o amor e empenho, merecem que os ajudemos a olhar o céu… com todo o esforço que isso possa representar!
1 Comments:
É exactamente por o egoísmo ser cada vez mais uma caracteristica marcante da personalidade das pessoas, que os que tentam seguir em frente muitas vezes não o conseguem com a mesma rapidez com que o fariam se tivessem o apoio dos que estão mais próximos.O ser humano é um ser dependente..dependente de afectos, dependente de relações...somos condicionados pelas circunstancias,pelas pessoas que estão à nossa volta...desde que nascemos que é assim...na realidade não fazemos nada sozinhos...não encontramos a felicidade sozinhos...e essa história do "levantei-me sozinho e ninguém me ajudou" também não é verdade...como seres sociais que somos temos uma responsabilidade para com os que estão à nossa volta...
Continua a escrever.Estarei atenta a novos posts teus! ;-)
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