Morangos de Outono

Quando acordei naquela manhã, um céu cinzentamente carrancudo e um cheiro intenso a chuva penetravam-me o quarto por uma fresta da janela. Percebi imediatamente que ia ser definitivamente um dia “não”. Sentia-me mais fatigada do que quando me tinha deitado e não me apetecia fazer nada, nem tão pouco dormir… Mas acabei por me conformar, embora relutantemente, com o que ia ser mais um dia difícil de passar, e arrastei-me para fora da cama. Duas horas e um longo duche depois sentei-me no chão da sala a organizar um monte de papelada que se tinha acumulado a um ritmo alucinante. Nunca tinha recebido tanta correspondência em tão pouco tempo, e no entanto nada de útil nem tão pouco de interessante. Parangonas como “Tudo a 50%! Faça já a sua encomenda!” ou “Participe na excursão a Fátima e ganhe um trem de cozinha”, folhetos do Continente e da Telepizza e até um pequeno cartão de uma qualquer empresa de serralharia com o calendário dos jogos de apuramento da Selecção Portuguesa para o Mundial 2006 no verso faziam o colorido das letras parecer ridiculamente aviltado. E, embrulhado no retorcido arco-íris de caracteres, o ríspido preto e branco das contas da água e do Visa. Com a vista a latejar, descansei os olhos na direcção da porta envidraçada da varanda. Um gigantesco muro repleto de mil outras janelas emparedava-me o horizonte, e fez-me sentir ainda mais moída. Embora não me sentisse com energia, uma espécie de claustrofobia apoderou-se de mim e empurrou-me para fora de casa.
Rodei a chave na ignição do carro sem saber muito bem para onde ir. Precisava de respirar, limpar da mente o peso dos milhares de toneladas de betão que me entravam pelos vidros de casa todos os dias. Curiosamente, sentia-me bem melhor dentro daquele pequeno casulo metálico. “Pelo menos destas janelas posso avistar o que eu quiser…”. Mas que ideia brilhante! Num rasgo frenético de motivação resolvi comprar uma planta para pôr na varanda. Pelo menos distrair-me-ia a vista da triste paisagem…
Cheguei a casa com uma pequena roseira enfiada numa floreira, entusiasmada com a promessa dos seus três pequeninos botões. Sempre tive uma adoração por rosas amarelas, apesar de a minha avó me advertir constantemente de que flores amarelas são só para funerais. Coloquei o vaso na varanda de modo a poder avistá-lo de todos os pontos da sala. E senti-me melhor, orgulhosa de mim mesma com tão simples remédio para a má disposição.
Esperei tempos e tempos e nada de rosas. Dia após dia a robusta roseira definhava mais um pouco, até que findo um mês acabou por secar completamente. Tristemente concluí que o peso daquele cimento todo não me comprimia só a mim… Mas estava tão irritada que voltei à florista com vontade de a insultar e acusar de burla. Felizmente caí em mim antes de o fazer, embora já me encontrasse dentro da loja. E foi então que avistei a frágil e atrofiada plantinha metida num pequeno vaso de plástico preto. Lembrava-me vagamente de a ter visto quando comprei a roseira, e até de ter rido interiormente ao ler o minúsculo cartão que espreitava do meio das folhinhas recortadas e que dizia “Morangueiro variante Sweet Charlie”. A camada poeirenta na superfície do vasinho fazia crer que aquela pobre verdura estava para ali esquecida há bastante tempo, mas o seu aspecto parecia-me tão igual à primeira vez que a havia visto que me fez questionar-me se aquela coisinha não seria mais robusta do que parecia. E resolvi comprá-la. Afinal, os morangueiros são da família das roseiras… Portanto era quase o mesmo que ter rosas na varanda.
Ao pousar o meu Sweet Charlie no mesmo local da varanda onde a roseira esteve abandonei a esperança de alguma vez obter morangos, ou sequer flores. Preocupava-me acima de tudo se ele sobreviveria ao Inverno que se avizinhava. Lembrei-me de converter em estufa um grande e velho aquário cujo único inquilino se havia revoltado e saltado para a secura da morte há três anos. E eu compreendia o seu suicídio. Ao ver novamente as cinco lâminas de vidro que o encarceravam não pude conter um sorriso irónico… Exactamente como o meu peixinho Bubbles, também eu me sentia estrangulada com o que via para lá dos meus vidros.
Com o passar dos dias reparei que o Sweet Charlie se estava a dar bem com a estufa improvisada. Nos primeiros tempos ia ver como estava quase de hora a hora, talvez traumatizada com o que aconteceu à pobre roseira amarela. Depois deixei-me de tantos cuidados. Via-o através das portas da varanda todos os dias, mas só ia visitá-lo de vez em quando, para lhe dar de beber. Passaram-se alguns meses e ele não crescia, mas pelo menos estava bem verde. E de uma forma simpaticamente passiva estava também sempre pronto a desviar-me o olhar dos prédios em frente.
Faltavam três semanas para a Primavera quando reparei que do Sweet Charlie havia brotado um novo rebentinho. Numa centelha de esperança ocorreu-me que talvez fosse uma flor… E que alegria isso me traria! Mas com o tempo o brotinho revelou-se apenas mais uma folhinha, tão verde e recortada como as outras. Fiquei desapontada, mas ainda sentia a mesma gratidão pelo papel que o Sweet Charlie tinha na minha vida. Sabia, porém, que era o encerrar definitivo dessa esperança. E desse dia em diante deixei de o perscrutar, limitando-me a aguá-lo.
Nesse ano a minha vida encontrava-se num furioso rebuliço. Estava entre empregos, falecera-me um familiar próximo, tinha terminado uma longa relação e sentia-me desorientada. Parecia-me que o universo se tinha amotinado contra mim. Sentia-me anti-social e talvez por isso não me apetecia falar com ninguém. Queria desaparecer. No entanto, esbanjava o meu tempo livre enfiada em centros comerciais. Dava-me gozo andar incógnita e transparente no meio da amálgama de gente, olhar para a anárquica horda e sentir-me sossegada por nenhuma daquelas pessoas ter qualquer tipo de assunto comigo. Nos últimos tempos estava, pelas piores razões, aguçadamente ciente do pior que existe na raça humana, e provavelmente por esse motivo tinha tanto prazer em estar simultaneamente tão próxima e tão distante da chusma de “window shoppers”.
Num desses devaneios aconteceu sentir uma mão no meu ombro. Voltei-me e deparei com um colega que não via há alguns anos. Cumprimentou-me afavelmente e aquela inesperada familiaridade fez-me sentir estranha. Porém, a genuinidade com que o fez amainou-me as defesas. Tínhamos convivido bastante nos tempos de faculdade, mas, por algum motivo daqueles que nos incomodam imenso mas que não sabemos explicar nem tão pouco evitar, havíamos perdido o contacto. Talvez nunca tivéssemos chegado a ser amigos, mas a naturalidade com que nos dávamos nessa altura tê-lo-ia certamente assegurado não fosse termos seguido caminhos disjuntos. Convidou-me para um café e por um instante fiquei inquieta, pois há muito que não tinha vontade de partilhar tempo com ninguém. Não obstante, a perspectiva de o fazer com ele mostrava-se bastante apelativa, e fez-me sentir bem. Trocámos contactos e uns dias depois fomos a um barzinho simpático. As luzes preguiçosas e de um dourado macio tornavam a moleza dos assentos singularmente confortável. Fiquei surpreendida com o paralelismo dos nossos percursos de vida e emoções, e como tal saboreei o diálogo com particular regalo. Foi como ouvir descrever o meu imo pelas palavras de outro, mas pelos mesmos olhos. Sentia-me como se estivesse num momento de introspecção, como quem confidencia secretamente com o espelho. Sabia que era mútuo. E naquela confabulação aprazível, as horas passaram fluidas e discretas.
Eram já 06h40 quando nos despedimos, mas fizemo-lo em cúmplice relutância. No caminho para casa, o pavimento molhado da solitária 2ª Circular reflectia os faróis do carro. Mais à frente e poucos metros acima, um avião cruzou o céu quase limpo em direcção ao aeroporto, esculpindo a negro os seus contornos no matizado da alvorada. Nesse breve instante, revi-me no enorme aparelho alado. Depois de uma longa e extenuante viagem cheia de turbulência, sentia-me preparada para aterrar.
Cheguei a casa e o enlevo daquela noite tirara-me o sono. Aninhei-me por entre as almofadas do sofá com uma caneca de chá a aquecer-me as mãos, ainda a tempo de apreciar os primeiros e tímidos raios do sol que nascia por detrás do enorme prédio de doze andares que me enclaustra a janela. Por entre os imponentes edifícios, uma pequena faixa visível de céu alardeava algumas nuvens cinzentas, denunciadoras da chegada do Outono. Olhei para o Sweet Charlie, sozinho na varanda, barricado na sua fortaleza vítrea. Há já muito que não me sentava a observá-lo. E de um golpe de vista reparei em algo subtilmente camuflado sob as suas folhas recortadas…
Um morango! Embora pequenino, tinha um rubor apetecível. Sentia-me dormente de estupefacção. Não conseguia compreender. Como teria o Sweet Charlie conseguido ocultar a criação de tamanho tesouro?! Como era possível não ter visto a flor?! E o mais inacreditável, morangos em pleno Outono?! Ao contemplar aquela plantinha fenomenal o entorpecimento rapidamente se metamorfoseou num rasgado sorriso. Dei um último gole de chá e instalei-me de novo no sofá. Na mesma faixa de céu, as nuvens pareciam multiplicar-se, ameaçando perigosamente o sol já alto. Com um suspiro conformei-me com o que ia ser mais um dia de chuva. Mas desta vez com um outro alento. Afinal, o Sweet Charlie acabara de testemunhar que as melhores coisas da vida ocorrem nos momentos mais imprevisíveis. Ainda com estes pensamentos a ecoar no espírito, ecoou na sala o toque do telemóvel…
Rodei a chave na ignição do carro sem saber muito bem para onde ir. Precisava de respirar, limpar da mente o peso dos milhares de toneladas de betão que me entravam pelos vidros de casa todos os dias. Curiosamente, sentia-me bem melhor dentro daquele pequeno casulo metálico. “Pelo menos destas janelas posso avistar o que eu quiser…”. Mas que ideia brilhante! Num rasgo frenético de motivação resolvi comprar uma planta para pôr na varanda. Pelo menos distrair-me-ia a vista da triste paisagem…
Cheguei a casa com uma pequena roseira enfiada numa floreira, entusiasmada com a promessa dos seus três pequeninos botões. Sempre tive uma adoração por rosas amarelas, apesar de a minha avó me advertir constantemente de que flores amarelas são só para funerais. Coloquei o vaso na varanda de modo a poder avistá-lo de todos os pontos da sala. E senti-me melhor, orgulhosa de mim mesma com tão simples remédio para a má disposição.
Esperei tempos e tempos e nada de rosas. Dia após dia a robusta roseira definhava mais um pouco, até que findo um mês acabou por secar completamente. Tristemente concluí que o peso daquele cimento todo não me comprimia só a mim… Mas estava tão irritada que voltei à florista com vontade de a insultar e acusar de burla. Felizmente caí em mim antes de o fazer, embora já me encontrasse dentro da loja. E foi então que avistei a frágil e atrofiada plantinha metida num pequeno vaso de plástico preto. Lembrava-me vagamente de a ter visto quando comprei a roseira, e até de ter rido interiormente ao ler o minúsculo cartão que espreitava do meio das folhinhas recortadas e que dizia “Morangueiro variante Sweet Charlie”. A camada poeirenta na superfície do vasinho fazia crer que aquela pobre verdura estava para ali esquecida há bastante tempo, mas o seu aspecto parecia-me tão igual à primeira vez que a havia visto que me fez questionar-me se aquela coisinha não seria mais robusta do que parecia. E resolvi comprá-la. Afinal, os morangueiros são da família das roseiras… Portanto era quase o mesmo que ter rosas na varanda.
Ao pousar o meu Sweet Charlie no mesmo local da varanda onde a roseira esteve abandonei a esperança de alguma vez obter morangos, ou sequer flores. Preocupava-me acima de tudo se ele sobreviveria ao Inverno que se avizinhava. Lembrei-me de converter em estufa um grande e velho aquário cujo único inquilino se havia revoltado e saltado para a secura da morte há três anos. E eu compreendia o seu suicídio. Ao ver novamente as cinco lâminas de vidro que o encarceravam não pude conter um sorriso irónico… Exactamente como o meu peixinho Bubbles, também eu me sentia estrangulada com o que via para lá dos meus vidros.
Com o passar dos dias reparei que o Sweet Charlie se estava a dar bem com a estufa improvisada. Nos primeiros tempos ia ver como estava quase de hora a hora, talvez traumatizada com o que aconteceu à pobre roseira amarela. Depois deixei-me de tantos cuidados. Via-o através das portas da varanda todos os dias, mas só ia visitá-lo de vez em quando, para lhe dar de beber. Passaram-se alguns meses e ele não crescia, mas pelo menos estava bem verde. E de uma forma simpaticamente passiva estava também sempre pronto a desviar-me o olhar dos prédios em frente.
Faltavam três semanas para a Primavera quando reparei que do Sweet Charlie havia brotado um novo rebentinho. Numa centelha de esperança ocorreu-me que talvez fosse uma flor… E que alegria isso me traria! Mas com o tempo o brotinho revelou-se apenas mais uma folhinha, tão verde e recortada como as outras. Fiquei desapontada, mas ainda sentia a mesma gratidão pelo papel que o Sweet Charlie tinha na minha vida. Sabia, porém, que era o encerrar definitivo dessa esperança. E desse dia em diante deixei de o perscrutar, limitando-me a aguá-lo.
Nesse ano a minha vida encontrava-se num furioso rebuliço. Estava entre empregos, falecera-me um familiar próximo, tinha terminado uma longa relação e sentia-me desorientada. Parecia-me que o universo se tinha amotinado contra mim. Sentia-me anti-social e talvez por isso não me apetecia falar com ninguém. Queria desaparecer. No entanto, esbanjava o meu tempo livre enfiada em centros comerciais. Dava-me gozo andar incógnita e transparente no meio da amálgama de gente, olhar para a anárquica horda e sentir-me sossegada por nenhuma daquelas pessoas ter qualquer tipo de assunto comigo. Nos últimos tempos estava, pelas piores razões, aguçadamente ciente do pior que existe na raça humana, e provavelmente por esse motivo tinha tanto prazer em estar simultaneamente tão próxima e tão distante da chusma de “window shoppers”.
Num desses devaneios aconteceu sentir uma mão no meu ombro. Voltei-me e deparei com um colega que não via há alguns anos. Cumprimentou-me afavelmente e aquela inesperada familiaridade fez-me sentir estranha. Porém, a genuinidade com que o fez amainou-me as defesas. Tínhamos convivido bastante nos tempos de faculdade, mas, por algum motivo daqueles que nos incomodam imenso mas que não sabemos explicar nem tão pouco evitar, havíamos perdido o contacto. Talvez nunca tivéssemos chegado a ser amigos, mas a naturalidade com que nos dávamos nessa altura tê-lo-ia certamente assegurado não fosse termos seguido caminhos disjuntos. Convidou-me para um café e por um instante fiquei inquieta, pois há muito que não tinha vontade de partilhar tempo com ninguém. Não obstante, a perspectiva de o fazer com ele mostrava-se bastante apelativa, e fez-me sentir bem. Trocámos contactos e uns dias depois fomos a um barzinho simpático. As luzes preguiçosas e de um dourado macio tornavam a moleza dos assentos singularmente confortável. Fiquei surpreendida com o paralelismo dos nossos percursos de vida e emoções, e como tal saboreei o diálogo com particular regalo. Foi como ouvir descrever o meu imo pelas palavras de outro, mas pelos mesmos olhos. Sentia-me como se estivesse num momento de introspecção, como quem confidencia secretamente com o espelho. Sabia que era mútuo. E naquela confabulação aprazível, as horas passaram fluidas e discretas.
Eram já 06h40 quando nos despedimos, mas fizemo-lo em cúmplice relutância. No caminho para casa, o pavimento molhado da solitária 2ª Circular reflectia os faróis do carro. Mais à frente e poucos metros acima, um avião cruzou o céu quase limpo em direcção ao aeroporto, esculpindo a negro os seus contornos no matizado da alvorada. Nesse breve instante, revi-me no enorme aparelho alado. Depois de uma longa e extenuante viagem cheia de turbulência, sentia-me preparada para aterrar.
Cheguei a casa e o enlevo daquela noite tirara-me o sono. Aninhei-me por entre as almofadas do sofá com uma caneca de chá a aquecer-me as mãos, ainda a tempo de apreciar os primeiros e tímidos raios do sol que nascia por detrás do enorme prédio de doze andares que me enclaustra a janela. Por entre os imponentes edifícios, uma pequena faixa visível de céu alardeava algumas nuvens cinzentas, denunciadoras da chegada do Outono. Olhei para o Sweet Charlie, sozinho na varanda, barricado na sua fortaleza vítrea. Há já muito que não me sentava a observá-lo. E de um golpe de vista reparei em algo subtilmente camuflado sob as suas folhas recortadas…
Um morango! Embora pequenino, tinha um rubor apetecível. Sentia-me dormente de estupefacção. Não conseguia compreender. Como teria o Sweet Charlie conseguido ocultar a criação de tamanho tesouro?! Como era possível não ter visto a flor?! E o mais inacreditável, morangos em pleno Outono?! Ao contemplar aquela plantinha fenomenal o entorpecimento rapidamente se metamorfoseou num rasgado sorriso. Dei um último gole de chá e instalei-me de novo no sofá. Na mesma faixa de céu, as nuvens pareciam multiplicar-se, ameaçando perigosamente o sol já alto. Com um suspiro conformei-me com o que ia ser mais um dia de chuva. Mas desta vez com um outro alento. Afinal, o Sweet Charlie acabara de testemunhar que as melhores coisas da vida ocorrem nos momentos mais imprevisíveis. Ainda com estes pensamentos a ecoar no espírito, ecoou na sala o toque do telemóvel…
2 Comments:
xcelente primaxa!;)..
continua...klker dia e um livro;)
Não podia deixar de vir aqui marcar a minha presença. Gostei muito do texto; para além de simples na construção, agradável de ler e optimista na sua conclusão, surpreendeu-me pela positiva. Aliás, não paras de o fazer :)
Beijinhos...
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