sexta-feira, março 21, 2008

A Ave do Paraíso


Silêncio. Valoel despertara e quase ensurdecia com o sibilar lancinante do sossego da madrugada. Concentrava todas as forças e atenção na própria respiração, para aliviar o estridente motim auditivo silencioso obstinado em fazê-lo sentir como se estivesse aferrolhado nas vísceras de uma britadeira gigante. De olhos meninos, pupilas escancaradas, procurava instintivamente na brecha das cortinas de riscas alguma distracção que lhe acenasse do mundo lá de fora. A manhã acendia-se lentamente por um sol indesvendável, espezinhado sob as nuvens mais grossas e argilosas que alguma vez vira. Valoel costumava sentar-se no seu pequeno tamborete de precioso mogno e marfim e enterrar os cotovelos no caixilho de contrastante madeira velha da janela, rendilhada do caruncho, onde descansava a cabeça nas mãos e deixava que o olhar e a imaginação deambulassem e se perdessem no exterior. Mas por algum motivo naquele dia sentia-se diferente. Com o queixo internado na concha de uma mão, ofegava sobre a arcaica janela e ia dedeando na condensação rabiscos informes que lhe mantinham o espírito alheado da violenta paz do seu pequeno quarto. Como um tirano louco, aniquilava-os uns atrás dos outros, destruindo com uma nova bafejadela de ar usado os que iam nascendo. Os toscos vidros distorciam ainda mais a imagem externa do jardim das traseiras, agora abandonado e radicalmente tomado de conquista por hordas de reles ervas daninhas, arbustos tortos e desgrenhados e intrépidas trepadeiras que estrangulavam a terra e engoliam tudo quanto se arriscasse a brotar dela. As árvores de fruto, há muito olvidadas, lembravam agora estendais de farrapos dependurados e esquecidos há séculos. A romãzeira tinha até rachado pelo meio e acabado por derrocar de tanta sede. Valoel fitou novamente o céu assombrado de nimbos gigantes. Aquele dia de Março teimava em alvorar cinzento. Subitamente, uma hercúlea trovoada dilacerou o firmamento de ponta a ponta, seguida instantaneamente de um estrondo aterrador e de uma borrasca torrencial digna dos trópicos. Toda aquela chuva chegara tarde demais para a malfadada romãzeira, mas não obstante e totalmente indiferente à pobre árvore, parecia querer inundar o universo e corroía ainda mais o outrora edénico quintal.


Valoel adorava passarinhos. Contemplava-os durante longos períodos de tempo, às vezes horas seguidas, manhãs e tardes inteiras. Nos intervalos das aulas ignorava brincadeiras, jogos e colegas, preferia sentar-se no relvado do recreio a presentear a passarada com bagos de arroz que larapiava da cozinha e trazia nos bolsos dos calções da farda escolar ou com as migalhas do pão-de-leite da merenda que a mãe lhe preparava todos os dias. Costumava conversar com os pardais, conhecia-os um por um. A sua mãe conhecia a sua paixão mas não aquela cumplicidade, e por isso estranhava os longos períodos de aparente isolamento que Valoel passava no jardim e os recados preocupados da sua professora. Não era comportamento normal de uma criança de sete anos. Certa vez oferecera-lhe uma pequena gaiola de madeira com um pintassilgo, mas Valoel, num gesto de inocente sapiência, escancarara a portinhola e deixara o pobre passarinho alar para a liberdade logo no dia seguinte. Embora adorasse pássaros preferia deixá-los livres, e sonhava com o dia em que um deles lhe pousasse na mão e o tocasse. Como deveriam ser fofas as suas penas! Apesar de dóceis e palradores, os pardais eram sempre ariscos e nunca se aproximavam muito. Assim como todas as restantes avezinhas. Dialogavam amiúde com ele mas não descuravam a cautela e mantinham a distância necessária a uma descolagem de urgência, preventiva da eventual consequência nefasta de uma qualquer investida de fundamento suspeito. Mas Valoel não se impunha nem os coagia. Ansiava conhecer aquele momento de contacto, de confiança e entrega totais, porque aguardava expectante o momento em que um desses bichinhos voasse para junto dele para o tocar e não para ser tocado.

Naquela manhã a chuva recém chegada mas agora incessante futurava mais uma Primavera fria. Valoel esperava sentado à janela o despertar dos pardais, cuja melodia certamente o faria sentir melhor. Mas o silêncio perpetuava-se e os pássaros não cantavam. Valoel sacudiu a inércia do corpo e desceu até ao jardim, que nesse momento se afigurou tão ermo e arruinado que lhe pareceu que até os passarinhos o tinham abandonado. Perscrutando com os olhinhos castanhos ainda ensonados os habituais poisos que tão bem lhes conhecia, Valoel estranhou a ausência dos seus amigos. Sentou-se no sobejo tronco prostrado da romãzeira e esperou, mas ao fim de algum tempo ficara com o pijama severamente ensopado da intensa chuvada. A camisolinha de alças já pouco ou nada o aquecia. E nem sinal deles. Começara a tiritar e a sua vista perdia-se cada vez mais apática na lonjura da vedação do quintal… quando lhe pareceu distinguir um brilhante raio de luz violeta. As pálpebras pularam de um vigoroso salto esgazeando-lhe os olhos, o corpo petrificou-se-lhe. Percebeu instantaneamente que era o pássaro mais maravilhoso que alguma vez havia visto. A sumptuosa e fulgurante criatura alada acabara de poisar tranquila e majestosamente num galho proeminente do pouco que restava de uma velha amendoeira. Era uma ave do paraíso.

Que visão onírica! O maravilhoso pássaro não era grande mas tinha o corpo coberto de fabulosas penas púrpura, matizadas de um brilhante tom violeta rosado que produzia uma mistura de reflexos quase indescritível. Na cauda ostentava ainda duas penas colossais, compridas e da mesma tonalidade de roxo, e a cabeça era coroada por uma penugem esverdeada macia e vaporosa. Valoel ficou enfeitiçado. Ao contemplar um ser tão sublime de contra tão triste cenário de fundo, pareceu-lhe que toda a cor do mundo tinha escorrido e vazado do planeta, e colapsado sobre aquela ave pequenina. Absorto neste pensamento, viu a ave do paraíso levantar voo novamente, e quase sentiu o coração deter-se quando esta, em absoluto silêncio, lhe pousou no ombro despido. Valoel estava paralisado de êxtase. Mas a ave não se demorou. Depois de alguns momentos, que a Valoel mais pareceram eras, logo alou para longe e desapareceu na distância. Apesar disso, o suave toque daquele pequeno anjo ecoava ainda no ombro do menino, permanecendo esculpido na sua pele e na sua alma.

Aquele encontro de uma serenidade muda e explosiva sacudira-lhe o espírito. Tinha no mesmo dia corrido a arquitectar uma morada para a sua ave do paraíso. Sim, porque ela o tinha escolhido. A ele. Era Sua. Estava certo disso. Valoel revirou a casa em busca dos mais nobres materiais para construir um pequeno palácio digno do majestoso passarinho. Desmanchou o seu inestimável tamborete de mogno encastrado de pequenas estrelinhas de marfim, e empregou as tabuinhas como paredes. Sobre elas aplicou um telhado de cúpula redonda, feito de um antigo vaso de latão que poliu arduamente até parecer de ouro. Forrou o interior com um admirável ninho que fabricou recortando em pedaços uma das gravatas caras do seu pai e uma estola da sua mãe, enovelando cuidadosamente os pequenos retalhos da mais pura seda e de pêlo de coelho com um precioso fio de lã angorá dourada do cestinho de tricô da sua avó. Arrematou a obra de arte aplicando no exterior uma vareta de fino cristal, que serviria de poiso ao seu precioso pássaro. Trabalhou com afinco durante toda a noite e na madrugada seguinte o pequeno paço estava concluído. Orgulhoso da sua obra, e adivinhando que a sua preciosa avezinha iria apreciar, correu ao jardim e colocou a casinha sobre a amendoeira. E esperou.
***

Passaram-se dois anos e Valoel nunca mais viu a ave do paraíso. Todas as manhãs descia religiosamente ao melancólico jardim, colocava o pequeno palacete nos ramos ressequidos e cansados da amendoeira, sentava-se e aguardava em silêncio, esperançoso do regresso do seu passarinho. Dia após dia, semana após semana, mês após mês. Às vezes adormecia momentaneamente e fantasiava o voo de retorno do seu adorado anjo violeta, mas logo uma bofetada de solidão o despertava, arrastando-o de novo para a realidade. Não havia noite em que Valoel não sonhasse com essa mesma ilusão. Até mesmo quando fechava brevemente os olhos, a imagem que lhe avassalava a mente era a do seu passarinho pousando no seu ombro nu. E continuava esperando… mas a ave do paraíso não voltou a aparecer.

Valoel deixara gradualmente de conversar com os outros pássaros. Ainda os banqueteava com as oferendas do costume, sempre em silêncio, mas unicamente porque as trazia para as suas esperas pensando na ave do paraíso. A intimidade com as outras aves desaparecera, sobretudo com os pardais. Tinha já notado, havia algum tempo, a presença de um pardal novo por aquelas bandas, que reconhecia por uma característica e deveras curiosa pena amarelada que se destacava por entre a penugem castanha do seu pequenino busto. Embora o invulgar passarito parecesse particularmente curioso acerca do menino, também salvaguardava nervosamente a distância de segurança, assim como todos os outros pardais que Valoel não conhecia ou já não reconhecia.

Com o passar do tempo o propósito do ritual diário de Valoel foi desvanecendo. Já se abstraía passivamente daquela esperança enfraquecida e moribunda, e conformava-se vagarosamente com o facto de não mais voltar a ver a ave do paraíso. Triste e esgotado, determinou certo dia que não esperaria nem sofreria mais. Num impulso descomedido e quase colérico embrulhou na sua cabeça todas as imagens, sensações e emoções relativas ao anjo violeta numa fria amálgama imaginária, sepultou-a mentalmente no interior do palácio que construíra e decidiu entregá-lo definitivamente aos braços da amendoeira. Assim fez, e não voltou a pensar na ave do paraíso.

Alguns dias depois, ao olhar pela janela do quarto Valoel avistou o pardal da pena amarela pousado na amendoeira, investigando curiosamente a novidade arquitectónica que parecia ali se ter instalado definitivamente. Sentindo-se invadido de uma avassaladora e inesperada sensação, Valoel cavalgou como uma avalanche até ao jardim para arredar o intruso. O pobre pardal assustou-se com aquela correria desenfreada e fugiu velozmente. Retomando o fôlego, o menino riu-se de si mesmo e sentiu dó do infeliz passarinho. Na realidade era um verdadeiro desperdício aquela morada maravilhosa estar desabitada, e era perfeitamente compreensível que qualquer pássaro a cobiçasse, mas por algum motivo do coração Valoel não queria ali ave nenhuma a residir, nem sequer a pernoitar.
Dito isto, sentou-se no tronco caído da romãzeira a patrulhar o céu, pronto a expulsar quaisquer possíveis candidatos ao paláciozinho. Durante horas não avistou nenhum pássaro nas redondezas. E não quis acreditar quando a certa altura lhe pareceu enxergar ao longe… a ave do paraíso. Estupefacto e novamente pertrificado, contemplou rendido o seu sonho, agora real, enquanto o seu anjo violeta voltava para si. Por um momento Valoel duvidou de si mesmo e da sua sanidade, mas o fabuloso pássaro estava mesmo ali. Deslizava pelo éter aéreo e dirigia-se a ele num voo sumptuoso, pairando de uma forma quase surreal. Chegando junto dele, a maravilhosa ave poisou-lhe suavemente no colo. Valoel sentia-se completamente arrebatado, e por alguns segundos ficou sem reacção. Observou incrédulo enquanto o seu anjo violeta se aninhava nos seus braços, pressionando o corpo macio contra o seu peito que insistia em latejar descontroladamente. Com o coração a transbordar de pura alegria e cego de felicidade, o menino embora inquieto e desajeitado arriscou afagar o terno passarinho. Mas, malogradamente, o êxtase do momento traiu-o. Ao erguer a nervosa mãozinha sobre a sua amada ave púrpura, acabou por feri-la ao quebrar sem intenção uma das duas longas e admiráveis penas da cauda.
A ave deteve-se num rigor súbito. Ao perceber o que tinha feito, Valoel escorou a respiração e, aflito com a mágoa que tão desastradamente lhe provocara, implorou prontamente por perdão. Sem um ruído, o pássaro fitou Valoel com olhos doces que num diminuto instante se distorceram em duas atrozes esferas de gelo, cruéis como balas de diamante numa arma de fogo. Examinou breve e silenciosamente a pena magoada, pregou o olhar no infinito e levantou voo abruptamente, desaparecendo uma vez mais no horizonte além das fronteiras do jardim abandonado.

Valoel ficou arrasado. Destruído. Aniquilado. Depois de ter esperado tanto e desesperado ao ponto de abandonar a própria esperança, o seu sonho voltara para ele e ele ingenuamente perdera-o de novo, tristemente atraiçoado pela sua desajeitada mão de criança. Não imaginava como conseguiria viver com o desventurado facto de ter causado tamanho dano ao seu anjo violeta. Um grito explodiu na sua boca, das profundezas dos pulmões, do âmago mais recôndito da alma. “Perdoa-me! PERDOA-ME!!!”. E chorou. Deixou-se acabrunhar sobre o desmedido tapete de ervas daninhas e pranteou com quantas forças tinha, com quantas lágrimas e soluços lhe existiam dentro, até se sentir desfalecer.
Alguns minutos mais tarde, Valoel encontrou o rumo de regresso à consciência graças a uma vozinha afectuosa que lhe perguntava insistentemente se estava bem. Tombou a cabeça ao lado e ali estava, a escassos centímetros do seu rosto, o pardal da pena amarela.
– Porque choras? – perguntou o pardal.
– Pensei que já não era capaz de falar com os pássaros… – soluçou Valoel.
O pardal insistiu:
– Diz-me porque choras.
Valoel respirou fundo e explicou entrecortantemente o sucedido, e emudeceu de súbito para logo de seguida voltar a soluçar desalmadamente. Magoara o seu amado anjo violeta, quebrara-lhe a nobre e soberba pena!
O pardal aguardou pacientemente que a criança se acalmasse. Quando isso aconteceu, fitou o próprio peito, onde se alojava a sua pena amarela. Num gesto delicado mas firme, arrancou-a com o bico e estendeu-a carinhosamente a Valoel, que assistia incrédulo à cena que se desenrolava perante si. O menino perdeu novamente a compostura e bramiu, desesperado:
– Porque fizeste isso?! Porque me vens castigar ainda mais?! Eu nunca quis magoar o meu passarinho, nunca o faria consciente ou propositadamente, e agora magoas-te tu também por minha causa?!
Com um pulinho gracioso e ainda com a pena amarela no bico, o pardalinho saltou para o peito de Valoel, pousou a pena sobre o seu coração e disse:
– Ofereço-te a minha pena amarela, o meu pequenino orgulho, porque sei que onde esta cresceu, certamente crescerão mais. E se não voltarem a crescer também não fará mal, porque abdiquei dela por alguém que é digno do meu amor. Quanto a ti, magoaste o teu anjo e pediste-lhe perdão. Foste digno. Se ele não te perdoou e não te ofereceu a pena quebrada, então é ele quem nesse momento não mereceu o teu amor. Mas merecerá sempre o teu perdão.
Perante estas palavras, Valoel serenou. De olhos novamente brilhantes e renascidos, aceitou com gratidão a preciosa oferta do pardal, que estava agora aninhado sobre o seu peito. Surpreendido com a confiante firmeza e calma tranquilidade que agora lhe bailavam nas mãos, Valoel acariciou ternamente a penugem do gentil passarinho. Era muito mais fofa do que imaginara.

2 Comments:

Blogger Paulo Gonçalves said...

Comentário: Finalmente algo de novo.
Opinião: Simplesmente... Lindo.
Beijocas grandes e não pares de escrever.

03:00  
Blogger Rui said...

opa! para quando a versão de bolso? :-/

00:02  

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